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Cinco desembargadores do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJ-MT) votaram por condenar o juiz Flávio Miraglia Fernandes, que atua em Cuiabá, à pena de aposentadoria compulsória, por supostas ilegalidades cometidas em ações envolvendo cifras milionárias e pela má gestão da Vara de Falência e Recuperação Judicial de Cuiabá.
A decisão no Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD) foi adiada em razão de pedido de vistas formulado por dois desembargadores, na noite desta quinta-feira (26).
Caso seja condenado, ele será retirado da Magistratura e receberá aposentadoria proporcional ao tempo de serviço.
As suspeitas contra Flávio Miraglia surgiram após relatório elaborado na fiscalização extraordinária ocorrida na unidade, no ano passado.
Entre as supostas irregularidades estão: atrasos na expedição de milhares de cartas precatórias; homologação da inserção de créditos fictícios superiores a R$ 50 milhões em favor de credores; arrendamento de bens sem oitiva de credores; venda de bens de empresa em recuperação a preço vil; demora em decretar falência; nomeação irregular de administradores judiciais; expedição de alvarás irregulares em favor de síndico de empresa; contratação de escritório sem publicidade ou critério; autorização de pagamentos de R$ 47 milhões a escritórios, a título de honorários, sem qualquer prestação de serviço.
Já votaram pela condenação a relatora do caso, desembargadora Serly Marcondes, e os desembargadores Rubens de Oliveira, Márcio Vidal, Maria Helena Póvoas, e Maria Erotides.
Para que a aposentadoria seja aplicada, deve haver pelo menos 16 votos nesse sentido dentre os 30 desembargadores.
Defesa
O advogado Saulo Rondon Gahyva, que faz a defesa do juiz Flávio Miraglia, afirmou que as possíveis irregularidades atribuídas ao magistrado são, na verdade, problemas estruturais do Poder Judiciário.
Gahyva também pontuou que várias das irregularidades do relatório são relativas a fatos anteriores a 2013, ano em Miraglia começou a atuar na Vara de Falência e Recuperação Judicial.
A defesa sustentou que Miraglia tem feito sugestões administrativas para corrigir os problemas e o próprio relatório teria admitido que o juiz tomou providências ao verificar as impropriedades.
Quanto à numeação de advogados supostamente sem qualquer critério e por questões pessoais, Gahyva reforçou que o magistrado seguiu a lei e só nomeou profissionais gabaritados e sem qualquer mácula judicial. O valor dos honorários autorizados judicialmente também foi considerado regular pelo advogado.
"Desleixo"
Em seu voto, a desembargadora Serly Marcondes explicou que as investigações contra o juiz foram feitas em dois grupos. O primeiro sobre supostas irregularidades praticadas na Vara de Falência e Recuperação Judicial de Cuiabá. O segundo é de ilegalidades na condução dos processos de falência das empresas Cotton King e Olvepar.
Quanto às irregularidades na vara, a magistrada disse que foram detectados indícios de desvios de conduta; acúmulo de mais de 10 mil cartas precatórias; falta de controle de mandados; não lançamento de decisões no sistema Apolo; além da falta de controle de prazos e de gestão adequada.
“O magistrado atribuiu isso a falhas do sistema, à escassez de servidores. A correição apontou que tinha estoque de 12 mil processos, sendo que mais de 10 mil eram de precatórios. Apenas 186 deles estavam em ordem. Ao contrário do que apregoa o magistrado, o procedimento de cartas precatórias não possui complexidade. Não se vislumbra qualquer complexidade no percentual assombroso de cartas pendentes”.
“A correição observou uma quantidade desarrazoada de mandados distribuídos. Era tamanha a calamidade que sequer conseguiu ver a totalidade dos mandados pendentes, pois não havia controle. A secretaria não fazia qualquer controle e o magistrado não se preocupava com isso”.
De acordo com Serly, o “desleixo” com o qual o magistrado conduzia a unidade era tanto que alguns oficiais ficaram mais de quatro anos em posse de mandados sem cumprir.
“Isso revela a total incapacidade do magistrado em gerir a unidade. Em que pesem as alegações do magistrado, não existe qualquer expediente relatando tal situação. A falta de servidores não o exime da responsabilidade. Não se preocupou em adotar qualquer medida frente a alta demanda e impulsionamento desordenado dos processos. A referida unidade não sabia nem numerar as folhas corretamente. Foram encontradas peças processuais esquecidas em escaninhos”.
Cotton King
Uma das maiores ilegalidades citadas pela desembargadora no processo de falência da Cotton King foi o reconhecimento de um crédito de R$ 50 milhões da massa falida com a empresa Inter Factoring Fomentos Comerciais, que pertence ao advogado da Cotton King, Felício Valarelli.
Chamou a atenção de Serly Marcondes o fato de a empresa ter entrado em recuperação com uma dívida de R$ 58 milhões, sendo que R$ 50 milhões seriam débitos apenas com a Inter Factoring, que não tinha lastro.
Porém, ainda assim, a magistrada disse que Flávio Miraglia reconheceu o valor quando decretou a falência da Cotton King, sem fazer a devida verificação.
“Este crédito é desprovido de lastro, não há nem título de crédito para justificar o valor. A permanência desse crédito nos autos constitui risco a massa falida. Era recomendável que fosse devidamente apurada antes da decretação da falência, tendo em visto o valor e o impacto de potencial prejuízo a massa falida”.
“A divida total era de 58 milhões e suprimidos os outros créditos, sobrariam apenas 8 milhões. O termo de correição não constatou qualquer documento capaz de comprovar a origem do crédito de 50 milhões. O magistrado não hesitou em decretar a quebra da sociedade empresarial. A falência foi decretada em fevereiro de 2015 pelo indiciado. Não se pode dizer que não sabia quando decidiu pela decretação da quebra, uma vez que se exige a verificação para evitar falsidade documental que pudesse anular o pedido de falência. Competia a ele aquilatar os requisitos autorizadores antes de decretar a quebra. Decretar a falência sem verificar os créditos é no mínimo irresponsável”.
Serly registrou que outra empresa que pertence ao advogado da Coton King em sociedade com a irmã Ana Lúcia Vilarelli, a Mato Grosso Industria e Comércio de Fios, Tecidos e Artefatos Têxteis Ltda., arrendou o parque industrial da massa falida.
Todavia, a União denunciou que o arrendamento seria simulado e se trataria de uma tentativa de sucessão da empresa.
Apesar de ter recebido tal denúncia, segundo a desembargadora, Miraglia não tomou providências concretas.
“O magistrado ao invés de escalpelar os indícios de fraude, elegeu apenas a decretação da falência como espécie de punição. Todavia, essa atitude apenas reforça que as frágeis medidas não foram suficientes para sanar as irregularidades. Nenhuma providência efetiva foi tomada. A conduta completamente indolente do magistrado constitui violação aos direitos funcionais”.
Outra suposta fraude cometida pelo advogado da Cotton King também teria sido ignorada pelo juiz, segundo o voto. As investigações apontaram que Felício Valarelli também teria desviado bens da empresa mediante venda a preço vil em favor de outra empresa da qual ele era sócoio, a Inter Lex Consultoria.
“O magistrado disse que a venda foi levada a efeito antes de ele assumir o processo. Mas a denúncia foi levada quando ele já estava lá. E a correição apontou que não foi tomada nenhuma medida efetiva, apenas a troca do administrador judicial e o pedido de investigação. De igual modo, não houve a expedição do ofício para a instauração do procedimento criminal”.
Ainda neste processo da Cotton King, Serly Marcondes mencionou que Flávio Miraglia permitiu o arrendamento do parque industrial da massa falida a preços incompatíveis com o mercado e sem dar a devida publicidade a estes atos, inclusive sem consultar os credores.
“A Cotton King foi subarrendada para a DTX Têxtil, à revelia dos credores e do administrador. A despeito do magistrado ter prestado informações lacônicas, não foi feita publicidade dos atos. A DTX teria se utilizado do parque industrial da Cotton King por mais de um ano sem pagar. Não foram tomadas providências. A Mato Grosso Indústria também fez contrato de arrendamento e nunca promoveu qualquer pagamento. O valor estipulado era de R$ 1 milhão anual e não atendia aos parâmetros de mercado. Tudo foi homologado pelo magistrado em 2013”.
“Após o inadimplemento da DTX, foi feito novo arrendamento com a Darling Harbour no valor de R$ 100 mil mensais, que também previa honorários ao administrador. O juiz homologou em 2014 e quatro dias depois revogou o contrato, embora manteve a decisão. E foi exibido novo contrato pelo administrador entre a DTX e a Cotton King, requerendo a homologação. E o magistrado homologou sem qualquer ressalva, e sem oportunizar aos credores qualquer manifestação. Não existiu qualquer parametrização nos autos entre o preço e o valor praticado no mercado. Como era de se esperar, a DTX não pagou de novo e o contrato foi rescindido”
A desembargadora mencionou que depois de todas as denúncias trazidas na ação, não era crível e prudente que o juiz homologasse os arrendamento mediante “simples pedidos do administrador, sem estipular valores nem dar publicidade”.
“A fixação de honorários ao administrador também era ilegal, mas não serviu de obstáculo para o juiz homologar. A subarrendatária DTX disse que não pagou porque o parque estava sem luz. A informação é incompatível com o que disse o administrador judicial, que disse que a empresa estava em pleno funcionamento”.
A demora em decretar a falência também foi questionada pela desembargadora, que concluiu que a situação foi proposital
“O que salta aos olhos é que a despeito de inúmeras irregularidades procedimentais, os autos jamais tiveram qualquer reparo. Um emaranhado de decisões sem qualquer efetividade, apenas para retardar a falência. O que é mais grave: em que pese a ação de recuperação ter sido ajuizada em 2010, o juiz jamais conseguiu realizar a assembleia de credores. O magistrado envidou todos os meios possíveis para postergar ao máximo a falência, quando era a única medida cabível. Violou flagrantemente os deveres da magistratura”.
“Loteria” em honorários
No que tange ao processo de falência da Olvepar, a desembargadora relatou que os pagamentos autorizados pelo juiz aos escritórios de advocacia que defenderam a empresa chegaram na cifra de R$ 47 milhões, de forma injustificada e que “destoam da complexidade e do volume das ações”
“Há indícios de que as indicações dos escritórios e dos profissionais eram pessoais, sem justificativas técnicas. Foram efetuados pagamentos de R$ 46,9 milhões entre honorários advocatícios e de avaliadores, dentre estes R$ 7 milhões sem qualquer rubrica, sem saber quem é o destinatário”.
Serly Marcondes discordou da defesa do juiz, que justificou os valores pelo fato de tais advogados defenderem a Olvepar em centenas de processos. Segundo ela, apenas um dos escritórios teria recebido mais de R$ 31 milhões em honorários.
“A correição também constatou ausência de provas destes serviços. Sem prova do trabalho de que o labor tenha valido o valor exigido, cabe ao magistrado promover a adequação ou exigir a comprovação. Todavia, optou o magistrado por autorizar o pagamento de tal quantia que mais se assemelha a um prêmio de loteria, sem questionamento. Resta curioso que um dos advogados da massa falida defende o magistrado na investigação”.
Nesse processo da Olvepar, também foi questionada a venda indevida de móveis da empresa em desconformidade com as normas legais e “em preço inferior ao de mercado, mediante simples comunicação ao juízo”.
“O magistrado disse que homologou pela situação precária dos imóveis. Mas a correição verificou que o laudo de avaliação apontou que um imóvel valia R$ 500 mil e o outro R$ 455 mil, sendo que o juiz autorizou um por R$ 300 mil e outro por R$ 200 mil. Resta indubitável que não desempenhou a contento o dever fiscalizatório em permitir a venda em tão discrepante valor de mercado”.
Também foi usado para embasar o voto pela aposentadoria o fato de Miraglia ter autorizado a venda, de forma ilegal, de uma PCH (Pequena Central Hidrelétrica) outorgado pelo Governo à Olvepar.
“Foi autorizada a venda de PCH em Clevelândia (PR) por R$ 10 milhões, valor muito aquém do praticado no mercado. Esta decisão feriu expressa disposição legal, porque o decreto presidencial que autorizou o uso da PCH proibiu a alienação a terceiros”.
Todas as ilegalidades, juntas, motivaram a desembargadora a votar pela punição máxima ao juiz.
“O magistrado não exercia qualquer fiscalização sobre a unidade judiciária que geria. Os procedimentos permaneciam adormecidos em escaninhos. O quadro caótico é evidenciado pelas mais de 30 representações por excesso de prazo ingressados pelos mais diversos tribunais do país”.
“Frise-se que acerca das imputações, o magistrado indiciado não produziu qualquer prova documental ou testemunhal. Se não bastasse as condutas, ficou demonstrada a total incapacidade técnica do magistrado. Assim pela prática das infrações descritas, aplico a pena de aposentadoria compulsória com imediato afastamento”, votou.