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Racismo, bifobia e cultura do cancelamento no BBB: “Todo mundo lá é gente, as pessoas vão errar”, diz pesquisadora

 

Racismo, bifobia (discriminação contra pessoas bissexuais), dificuldade para encarar sexualidades dissidentes e “cultura do cancelamento” são alguns dos fatores apontados por Nealla Machado, que atravessaram a experiência de Lucas Koka Penteado e de outros brothers que ainda seguem dentro da 21ª edição do Big Brother Brasil. A convite do Olhar Conceito, a professora, doutoranda em Estudos de Cultura Contemporânea na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e integrante do Observatório de Comunicação e Desigualdade de Gênero — Pauta Gênero, da mesma universidade, conversou sobre os episódios que ocasionaram a saída do participante do reality.

A pesquisadora diz que apesar do estopim da saída de Lucas do reality ter sido o episódio da bifobia, onde ele teve a sua sexualidade sistematicamente questionada por participantes do programa, o racismo também é determinante para entender o tratamento dado a ele porque, de acordo com Nealla, as opressões dentro da sociedade nunca aparecem de forma isolada.

“É realmente a questão do preconceito, no caso específico do Lucas da bifobia. Mas a gente também tem que entender que os preconceitos, eles nunca vêm separados. A gente não pode esquecer que o Lucas é um homem negro, um homem periférico, que tinha uma série de questões especificas da vivencia dele, e isso tudo também contribuiu para esses ataques”, explica Nealla.

Reação desproporcional

É fato que ainda no início do reality Lucas irritou colegas dentro do programa, quando por exemplo propôs alianças entre homens contra mulheres, ou entre negros contra brancos. Mas o ponto principal aqui é: os erros de Lucas, mesmo após inúmeros pedidos de desculpas e tentativas de redenção diante da casa, foram proporcionais à invalidação que ele recebeu e que culminaram na sua desistência do programa após ter até mesmo a sua sexualidade questionada?

Ao analisar a conduta dos brothers após o beijo de Lucas e Gilberto, a pesquisadora faz a comparação com o tratamento recebido por participantes héteros que já se beijaram dentro da casa, inclusive nessa edição, para afirmar: a explicação cabível é o preconceito.

“Essa questão de exigir o “amor verdadeiro” é muito complexa porque eles [os participantes] estão dentro de um jogo. Dificilmente relacionamentos vão dar certo lá porque é uma situação diferente. Além disso, ninguém questiona casais héteros por estarem se juntando só “pelo jogo”, porque isso é uma coisa esperada. Agora, porque quando é um casal de dois homens, um casal gay isso incomoda tanto? Para mim, o que explica isso é a bifobia, o racismo, um pouco de classicismo também, pela vivência dos dois”, argumenta.

LGBTfobia

Para Nealla Machado, a existência de um estereótipo de masculinidade violenta, associado a LGBTfobia, enraizado dentro da sociedade brasileira, ajuda a compreender o comportamento apresentado pelos participantes dentro da casa, mesmo aqueles que não são heterossexuais.

“Se for parar para pensar eles [Gil e Lucas] foram muito corajosos de se beijarem em rede nacional. A coragem deveria ser vista como um bom sinônimo de masculinidade, mas aparentemente não foi. Um indício de que nós, brasileiros, de maneira geral, temos uma dificuldade muito grande em aceitar sexualidades dissidentes. Eu acho que o que mais surpreendeu a maioria das pessoas foi o fato de que foram pessoas da comunidade LGBT que colocaram esse peso todo em um beijo que deveria ter sido só um beijo, como todos os outros que acontecem na casa”.

Nealla ainda aponta que as expectativas criadas dentro da sociedade em torno de como deve ser um homem negro, assim como a sua sexualidade e a maneira que este deve agir diante de certas situações, também colaboraram para o episódio. “Como ele ficou com outro homem, e não é o que se espera de um homem negro, ele foi extremamente questionado”, explica.

Cancelamento e saúde mental

Outro aspecto mencionado pela pesquisadora e que também é determinante para entender o que aconteceu e ainda acontece nesta edição, é o sofrimento e o abuso psicológico entre “cancelados” e “canceladores”, respectivamente termos popularmente dados àqueles que após cometerem ou apontarem erros, são descartados ou destacados dentro da dinâmica social.

“Na minha percepção, parece que já fazem três meses que está passando esse programa, quando na verdade eu descobri ontem que fazem duas semanas. É muita informação acontecendo e aparentemente não tem ninguém muito bem lá dentro, psicologicamente falando”, explica.

Ao relembrar a situação de Lucas, que, após ter sido “cancelado” vinha há duas semanas enfrentando a humilhação e a segregação dos demais participantes da casa, a pesquisadora enfatiza o fato de que outros integrantes do reality também apresentavam e ainda apresentam comportamentos compatíveis com sofrimento mental, em decorrência de situações que aconteceram na casa.

“Obviamente que o Lucas sofreu muito, uma série de abusos, mas ele não foi a única pessoa da casa que sofreu. Claro que a bifobia influencia sim, porque ele foi o único que saiu, ele sofreu tanto ao ponto de sair, mas tem outras pessoas que sofreram e continuam lá dentro”, comenta.

Sobre isso, a pesquisadora afirma que apesar das ações terem pesos diferentes dentro da casa, do lado de fora, todos os participantes deverão sofrer com o peso das atitudes adotadas dentro de casa, mesmo os agentes do “cancelamento”.

“Não dá para esquecer que existem pessoas lá que podem estar acarretando o sofrimento de outras, mas elas também vão ter uma série de situações que vão ter que passar aqui fora, questão de saúde mental mesmo”, pontua a pesquisadora sobre participantes como Karol Conká e Lumena Aleluia, que promoveram episódios de humilhação contra Lucas dentro do reality.

Filtro da realidade

Para finalizar, Nealla afirma que apesar do reality ser uma amostra da realidade vivida fora do programa, o mesmo não deve ser interpretado como a “realidade pura e simples”, pois é um programa com roteiro e edição. No entanto, pode sim ser utilizado como o indicador de situações sociais que devem passar a ser pensadas pela sociedade.

A pesquisadora relembra, por exemplo, o fato de Lucas também ter sofrido com o cancelamento da casa e do público no começo do programa, situação que se inverteu após ele ser vítima de humilhações e de segregação. Segundo Nealla, é importante superar a “cultura do cancelamento” como a solução de problemas de atitudes de figuras midiáticas.

“Eu acho que esse é um dos BBB’s com a maior ocorrência de cancelamentos da história, só que o que as pessoas não estão entendendo é que todo mundo lá é gente, as pessoas vão errar. Não adianta você cancelar alguém e acabou ‘ah, não vou mais conversar com essa pessoa’. A gente tem que aprender que não é assim que funciona e isso não vai levar ninguém a nada porque o Lucas foi cancelado e depois ele foi descancelado, mas ele pode ser cancelado de novo”.

Fonte: Olhar Direto – Michael Esquer

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