“Vão me medicar por eu ser gay? É horripilante pensar nisso”

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Foto: Reprodução
ALMT TRANSPARENCIA

Midia News

Não bastasse sofrer com todo preconceito, agressões físicas e verbais, culminando muitas vezes em morte, a comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) está agora revivendo um "pesadelo" que achava já ter "enterrado".

Isso porque, na semana passada, o juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, do Distrito Federal, concedeu uma liminar que reacendeu a polêmica em torno da possibilidade de psicólogos oferecerem "terapias" de reversão sexual, popularmente chamadas de "cura gay".

A decisão repercutiu também em Mato Grosso. O presidente do Conselho Municipal da Atenção à Adversidade Sexual e colunista social, Valdomiro Arruda, e o diretor de comunicação da ong Livremente, Alexsanders Virgulino, lamentam o preconceito e a visão de que haveria uma "cura" para a homossexualidade.

"Achamos que já tínhamos superado essa questão, das pessoas imaginarem que ainda deveria ser dado um tratamento para aqueles que têm a homossexualidade como sua orientação. Nós trabalhamos muito para que isso não chegasse a esse patamar. Estamos no século XXI e ainda se vê um juiz colocando na 'ponta da caneta' uma questão como essa, dizendo que deve se trabalhar a questão de uma cura", afirmou Virgulino.

"Vão me medicar por eu ser gay? Vou participar de uma junta médica? É horripilante pensar nisso. Os pais que tiverem um filho gay, quando chegar na adolescência, vão fazer o quê? Internar em um manicômio? Dar choque elétrico? Vai tomar remédios controlado? O que vai acontecer com essa pessoa? É isso mesmo que queremos buscar?", questionou Valdomiro.

Os representantes da comunidade LGBT ainda falaram sobre outros assuntos, como a importância da Parada da Diversidade Sexual e a falta de apoio de políticos de Mato Grosso.

Alair Ribeiro/MidiaNews

Valdomiro Arruda

Valdomiro Arruda e Alexsanders Virgulino: retrocesso no combate ao preconceito

Confira a íntegra da entrevista:

MidiaNews – Como vocês viram a decisão judicial que trouxe de volta a polêmica da "cura gay"?

Alexsanders Virgulino  – A comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis, Transexuais e Transgêneros) de todo o Brasil, aqui de Mato Grosso e a ong Livremente veem a decisão como um retrocesso. Achamos que já tínhamos superado essa questão, das pessoas acharem que ainda deveria ser dado um tratamento para aqueles que têm a homossexualidade como sua orientação. Nós trabalhamos muito para que isso não pudesse chegar a esse patamar de novo. Estamos no século XXI e ainda se vê um juiz colocando na “ponta da caneta” uma questão como essa, dizendo que deve se trabalhar uma cura.

Para nós, vivenciar isso é um retrocesso muito grande. Porque isso traz consigo a questão da violência também. Porque nós vemos hoje uma bancada evangélica muito grande na Câmara, no Senado, na Assembleia, onde as políticas públicas não avançam.

E quem mais vai sofrer são as travestis e as transexuais, pelo fato de ter o seu físico totalmente diferente daquilo que é tido como “normal”. Por isso que temos em nosso Estado 11 casos de assassinatos de travestis não solucionados. E tudo isso vem a culminar nessa liminar desse juiz. Porque, ao assinar, ele está dizendo qual a população que não precisa e não deve ser respeitada como ser humano.

Valdomiro Arruda – Nós reconhecemos que é um retrocesso. Como que eu, Valdomiro Arruda, vou me sentir uma pessoa doente? Eu sou doente? Sou um colunista social, sou um microempresário, sou hoje presidente de um conselho de diversidade. Então, como eu vou ser tratado? O SUS [Sistema Único de Saúde] vai me suportar? Não suporta nem o que tem hoje. São essas perguntas que nós temos que fazer para esse juiz.

MidiaNews – Acha que este tipo de proposta de "cura gay" é algo que vem apenas dos religiosos ou uma parte considerável da sociedade pensa assim mesmo?

Alexsanders Virgulino –  Quando nós falamos de fundamentalistas – como a bancada evangélica que está aí dominando atualmente esse cenário que temos hoje – também temos que falar de outras religiões que se juntam para atingir uma população. Por exemplo: na religião católica, há os padres que estão se aliando aos evangélicos para atacar a população LGBT.

Mas não é só na religião. Eu, como educador, como é que vou para a sala de aula me deparar com alunos que tiram sarro e fazem chacota de outros alunos. Eu me pergunto como ele vai se enxergar? Uma pessoa doente? Então, como ficam essas vidas quando chegarem à fase adulta? Aí vamos nos deparar com o alto índice de suicídios. Porque as pessoas não serão aceitas em lugar nenhum. Não vão ser aceitas pela sociedade, não vão ser aceitas na igreja, nem na escola, porque não vão encontrar o “seu canto”.

Então, o que eu quero dizer é que não é somente na religião que vemos isso. São pessoas que não conseguem ver o direito do outro e entender que o outro também é parte dessa sociedade, que depende de apoio e de políticas públicas.

MidiaNews – Alguém já lhes propôs uma "cura gay"?

Valdomiro Arruda – Para mim não. Acho que ninguém ousaria (risos).

Alexsanders Virgulino – Para mim também não. Mas houve outras situações. Por exemplo: eu vim de uma família evangélica. Nasci num berço evangélico. E para que eu pudesse estar hoje, numa ong, ir numa parada gay, foi algo bastante difícil. Porque eu tinha uma comunidade que me regia, que era a igreja. Na minha cabeça, tudo que eu fosse falar e fazer, eu pensava primeiro na igreja, não era nem nos meus pais. Só para você ter ideia de como a questão religiosa tinha importância na minha vida.

Por causa disso, só fui “sair do armário” com 24 anos. Tudo isso por medo do que iam dizer os membros da igreja, os meus amigos, o pastor…

E depois que eu saí dessa religião, eles fizeram um debate na igreja para falar sobre homossexualidade. Só que eu fiquei sabendo que quem iria fazer o debate eram simplesmente os membros da igreja. Não havia nenhum psicólogo, não havia LGBT, não havia nenhum médico para poder falar sobre essa questão. Como que eu vou mandar uma mensagem para as pessoas, se estou colocando para elas apenas “uma verdade”, que é a que eu tenho. Cadê as outras?

Posso dizer que vivi muitos atos de machismos, cresci sabendo até onde era o limite de um homem e de uma mulher. A sociedade ainda peca bastante nisso.

Alair Ribeiro/MidiaNews

Valdomiro Arruda

"Vivi muitos atos de machismo, cresci sabendo até onde era o limite de um homem e de uma mulher", disse Alexsanders

MidiaNews – Que tipo de preconceito é mais danoso: o velado ou o escancarado?

Valdomiro Arruda – Eu acho que o escancarado é o que atinge bastante a gente. É o que te agride mais, faz doer mais.

Alexsanders Virgulino – Eu já acho que o que mais fere é o velado. Porque no caso do escancarado, eu sei que “você” pensa algo de mim e não vai colaborar com nada do que eu pedir ou disser. Agora o velado… Quando eu vou para a Câmara, por exemplo, e peço ”por favor, deputado, ajude essa população que está morrendo, que já tem onze assassinatos e nenhum foi solucionado”, ele se propõe em ajudar, mas na verdade não é o que ele pensa.

Isso acontece até entre muitos gays que sabem da sua orientação sexual e se privam de mostrar como realmente são por medo do que possa acontecer com eles. Então será que todos os gays mais “másculos”, digamos assim, não são assim por medo de serem como o outro que dá mais “pinta”?

MidiaNews – Não é assustador que profissionais da área de saúde – com educação superior – ofereçam a possibilidade de curar um gay?

Valdomiro Arruda –  "Vão me medicar por eu ser gay? Vou participar de uma junta médica? É horripilante pensar nisso. Os pais que tiverem um filho gay, quando chegar na adolescência, vão fazer o quê? Internar em um manicômio? Dar choque elétrico? Vai tomar remédios controlado? O que vai acontecer com essa pessoa? É isso mesmo que queremos buscar?  

Alexsanders Virgulino – Eu acho que é bastante grotesco. Podemos até fazer uma análise, de como que, em pleno século XXI, as pessoas têm a oportunidade de entrar em uma faculdade, se formar e depois construir cidadãos, e acabam levando consigo uma bandeira de segregação. Não cabe na cabeça que um doutor tenha esse pensamento.

Por isso eu digo: como se dá a formação dessa pessoa? Não é somente a formação acadêmica. Porque nós sabemos que quando uma pessoa termina a faculdade, ele sai para o mercado de trabalho e ainda não está completamente pronta. E eu falo isso como educador.

MidiaNews – Vocês acham que está havendo uma guinada conservadora no Brasil em relação à questão da homossexualidade?

Alexsanders Virgulino – Realmente o conservadorismo deu uma guinada muito grande. Quando acontece, por exemplo, de alguém postar numa rede social que ser gay é ser alguém promíscuo ou que ser gay não é algo de Deus, isso começa a disseminar. Então isso quer dizer que, quando um começa, o outro vai e continua a fazer igual. Não tem alguém que condene isso. Então o conservadorismo vai prosseguir.

Valdomiro Arruda – Por exemplo, eu ainda sofro discriminação, por mais que tenha respeito na sociedade. A discriminação é quase imperceptível para os outros, mas eu ainda vejo e sinto muito isso “na pele”.

MidiaNews – Vocês já foram agredidos ou temeram alguma agressão por conta da orientação sexual?

Valdomiro Arruda – Eu nunca fui agredido. Acho que, pelo fato de ser colunista social, sempre frequentei “altas festas”. Em algumas delas já fiquei assustado, porque nem todo mundo aceita.  Eu frequento eventos héteros, eventos LGBT e isso deixa a gente preocupado. Até porque a gente nunca sabe o que vai encontrar nesses ambientes.

Alexsanders Virgulino –Também nunca sofri. Mas eu tenho uma proteção muito grande. Então eu vejo isso como algo um pouco distante. Porque eu falo isso? Porque sou gay sim, porém tenho uma formação, tenho meu entendimento, estou engajado em algo social, que é a ong. Eu acho mais fácil chegar a outra pessoa que não tem a mesma rede de proteção. Porque a nossa rede vai ditar se vamos ter uma vida mais prolongada ou não. Isso serve para a violência física e para a violência moral.

Alair Ribeiro/MidiaNews

Valdomiro Arruda

"Eu conheço negros travestis que não têm perspectivas de vida, não conseguem um espaço", disse Valdomiro Arruda

MidiaNews – Acha que o poder público não está fazendo a parte dele na redução do preconceito?

Alexsanders Virgulino – Bom, nós temos hoje no Estado de Mato Grosso um grupo militar que vem trabalhando as questões voltadas à criminalidade contra os LGBTs. Avançou sim. Porém qual é o verdadeiro poder que esse grupo tem no combate à homofobia? Ele tem algum poder além de apenas contabilizar os dados? O que mais tem feito? Será que os dirigentes da Segurança querem realmente dar essa visibilidade? E aí não estou nem falando  em questão de religiosidade. Estou falando de uma instituição, a Polícia, que ainda é realmente muito machista, onde homens é que ditam as abordagens.

Há casos de pessoas, por exemplo, que chegam para registrar um boletim de ocorrência, para dizerem que foram chamadas de “veado”, aí o agente já dá aquele risinho de canto de boca. Isso ainda acontece muito.

MidiaNews – Ser gay negro é pior ainda?

Valdomiro Arruda – Creio que sim. É pior. Como eu tive a oportunidade de estudar e estar inserido na sociedade, me sinto privilegiado. Mas e aqueles que não conseguem? Eu conheço negros travestis que não têm perspectivas de vida, não conseguem um espaço, não conseguem um trabalho, não conseguem estudar. O que resta é se prostituir para sobreviver.

Alexsanders Virgulino – E também tem o pobre, negro e travesti. Se for tudo isso, você “está no sal”. Porque a sociedade nos diz claramente quem é que devemos ser. E se você foge dessas normas que são impostas, acaba sofrendo as consequências. E aí você sofre. Se é negro sofre duas vezes.

MidiaNews – Como vocês veem o posicionamento e a atuação dos políticos, como por exemplo, o deputado federal Victório Galli (PSC), que é um representante do Estado no Congreso?

Valdomiro Arruda – Primeiro eu acho que o nobre deputado tem que se preocupar mais com o nosso Estado, trabalhar mais políticas públicas voltadas para cá. Eu não tenho visto nenhum resultado em seu mandato. Eu só o vejo preocupado com a população LGBT. Ele se preocupa até com o Mickey [personagem de Walt Disney que, para o congressista, seria gay]. Quem se preocupa com o Mickey é porque deve estar assistindo desenho animado o dia inteiro. Então eu penso isso e digo: deputado, cuide mais do seu Estado, cuide da sua reeleição, trabalhe mais os votos que você ganhou e esqueça o Mickey.

Alexsanders Virgulino – Infelizmente os nossos governantes ainda não passaram para analisar por que eles estão ali. Eles levam o que vivem na Igreja para dentro da política.

Por que é que eles têm que tirar o direito de alguém baseado em convicções religiosas? Quando eu levo essas convicções, eu estou levando, na ponta da caneta, tudo aquilo que eu não quero que você represente para mim dentro da sociedade. Aí, depois, eles vêm com aquelas frases: “Nós amamos uns aos outros”. Mas como que podem afirmar isso se quando é algo direcionado para políticas públicas voltadas para uma população específica – que não teria custo nenhum para o Estado – eles dizem não? O que isso quer dizer?

MidiaNews – Essa semana houve a Parada da Diversidade Sexual, no Centro de Cuiabá. Em que esses eventos ajudam na conscientização?

Valdomiro Arruda – É uma forma de chamar atenção da população para ver a realidade do movimento, ver o que está acontecendo, como a “cura gay” e a homofobia. É o nosso momento de gritar por clamor. Não é uma festa, não é carnaval. É para chamar a atenção da população para que olhem para dentro do movimento, porque só quem é gay sabe o que vive e sabe o que passa.

Alexsanders Virgulino – Quando ela começou, era um chamamento direcionado para os dirigentes, para dizer “olha nós estamos aqui, nós trabalhamos e estamos colaborando com o Estado”. Então ajudamos na arrecadação de impostos. E se ajudamos, queremos, como todas as pessoas, ser respeitados e ter os mesmos direitos.

É um momento de festejo? É também. Porque é naquele momento que podemos ver a felicidade de cada gay, bissexual ou trans, que está ali. É a questão de se libertar e mostrar quem é de verdade.

E ainda tem pessoas que se perguntam por que precisam mostrar que é gay. Acham que temos que ficar em casa trancados. Por que o meu pai e minha mãe podem demonstrar carinho fora de casa e eu não posso? O que está acontecendo que só uma população pode fazer algo e outra não? Então a Parada Gay vem para esse momento de festejo também, sim!

MidiaNews – Houve uma polêmica em que o pastor Silas Malafaia criticou muito a criminalização da homofobia. Como vocês veem essa proposta?

Alexsanders Virgulino – Até hoje a homofobia não foi criminalizada e nós sabemos que não passou na Câmara por causa desses fundamentalistas. Então tudo que for voltado para a comunidade LGBT, eles vão barrar. Isso é algo que nós já sabemos, só que a luta não vai parar.

Porque não vemos nenhuma proposta em que Malafaia, ou o Galli dizendo que é uma população que também precisa?  Por que eles não dizem isso? Eles se embasam na questão religiosa, e isso eles falam claramente. Eles pregam muito o amor, mas depende de quem é a pessoa.

MidiaNews – Acha que tem certo ódio dessa parcela da classe política?

Alexsanders Virgulino – Essa palavra de ódio não vai sair da boca deles, porque a verdade é que eles são muito organizados. Essa bancada que está hoje no Congresso é organizada. E eu sempre falo para nossa militância: se nós não nos organizarmos também, eles vão conseguir o que querem. Vimos como uma caça às bruxas o que estão fazendo conosco.

Valdomiro Arruda – O que a gente busca é o que todo mundo tem, que é o respeito, só isso. Nós queremos buscar nossos direitos, iguais a todos. É simples.

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