Veto de Bolsonaro a produções LGBT gera crise no setor

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CAMARA VG

Fonte: Msn

O governo federal suspendeu, na semana passada, edital da Ancine (Agência Nacional do Cinema) que contemplava produções audiovisuais para TVs públicas com as categorias “diversidade de gênero” e “sexualidade”. O veto foi publicado e assinado pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra, após o presidente Jair Bolsonaro criticar nominalmente projetos ligados às temáticas e pré-aprovados pela agência.

Ao citar as produções, Bolsonaro provocou não só a suspensão do edital, mas também fez com que Henrique Pires deixasse o cargo de secretário especial de Cultura do Ministério da Cidadania. Em seguida, o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro abriu uma investigação para apurar se houve censura no veto do governo, partidos políticos se manifestaram e o setor audiovisual ficou alerta.

Entenda, ponto a ponto, o que Bolsonaro decidiu e qual a crise gerada:

O que Bolsonaro disse sobre filmes com “diversidade sexual”

“Quem quiser pagar… a iniciativa privada, fique à vontade. Não vamos interferir nada”, disse Bolsonaro em 15 de agosto, na tradicional live de quinta-feira no Facebook. “Mas fomos garimpar na Ancine filmes que estavam prontos para captar recursos no mercado”, afirmou, ao citar nominalmente quatro obras que estavam inscritas.

“Um filme chama Transversais. Olha o tema: ‘Sonhos e realizações de cinco pessoas transgêneros que moram no Ceará’. Conseguimos abortar essa missão”, continuou o presidente. Em seguida, ele citou AfronteReligare Queer e O Sexo Reverso, produções dentro da mesma temática no edital.

Ao listar os fimes, Bolsonaro negou censura. “Não censurei nada. Quem quiser pagar, se a iniciativa privada quiser fazer filme de Bruna Surfistinha, fique à vontade, não vamos interferir nisso daí.”

Bolsonaro afirmou ainda que a Ancine não vai liberar verbas para esses projetos e disse, também, que se a agência “não tivesse, em sua cabeça toda, mandatos [públicos]”, já teria “degolado tudo”. 

Quais produções LGBT Bolsonaro citou nominalmente

O presidente se referiu a quatro produções já pré-selecionadas em edital que foi realizado no governo anterior. São elas: a série documental Transversais, de Émerson Maranhão e Allan Deberton sobre transexuais no Ceará; Afronte, longa-metragem universitário de Bruno Victor Santos e Marcus Azevedo, sobre a vida de jovens homossexuais negros no DF, e citou Religare Queer e O Sexo Reverso.

Em resposta às falas do presidente, a equipe do filme Afronte publicou uma carta aberta em sua página do Facebook. Segundo a produção do filme, os projetos citados por Bolsonaro “foram tratados de maneira leviana”. 

O grupo ressalta que a Ancine “tem um papel importante na manutenção e no fomento do cinema no Brasil, e esse papel tem que ser exercido respeitando a liberdade artística e compreendendo que somos múltiplos”.

“Esse é o projeto que o presidente está deliberadamente censurando, num total desconhecimento da forma como os editais funcionam e se excedendo ao que é de competência direta do executivo”, diz o texto.

A carta divulgada pela equipe, que também acusa Bolsonaro de censura,  disponibiliza um link com o filme e recomenda que o presidente assista. 

O que diz o edital que foi vetado pelo governo federal

Bolsonaro atacou obras audiovisuais com temáticas LGBT e diversidade sexual que buscavam autorização de edital da Ancine e do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE), divulgado e coordenado pela EBC (Empresa Brasil de Comunicação). 

Em 13 de março deste ano, a EBC publicou o resultado preliminar das produções classificadas em 12 categorias do edital aberto em 2018. Nele, além de “diversidade de gênero”, havia outras categorias como “sociedade e meio ambiente”, “profissão”, “animação infantil” e “qualidade de vida”. Com a publicação da portaria, todas foram suspensas.

Foram pré-selecionadas no edital 609 obras, que ainda passariam por um filtro. Destas, apenas 19 estavam dentro das temáticas “diversidade de gênero” e “sexualidade”. No total, 80 obras seriam contempladas se o edital não tivesse sido vetado pelo governo.

Vencedores de cada região do Brasil, segundo o edital, ganhariam R$ 400 mil reais “para produção de 5 episódios com duração de 26 minutos e dentro da temática ‘série que aborda questões relacionadas à diversidade de gênero’. Este é o menor valor entre as categorias. 

O que diz a portaria que suspende edital da Ancine

Segundo a portaria publicada nesta semana, o documento ficará suspenso pelo prazo de 180 dias, com a possibilidade de ser prorrogado pelo mesmo período. Decisão aponta como justificativa a “necessidade de recompor os membros do Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual (CGFSA)”.

Ainda de acordo com a portaria, após a definição da nova composição do grupo, será “determinada a revisão dos critérios e diretrizes para a aplicação dos recursos do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual), bem como que sejam avaliados os critérios de apresentação de propostas de projeto”. Não há nenhuma menção direta às obras com temática LGBT citadas pelo presidente. 

Assim que o resultado foi publicado, Bolsonaro publicou uma imagem da notícia do jornal O Globo em sua conta do Instagram, mas sem legenda.

“Certíssimo. Valorizou a família. Aprovado. Que comece a choradeira. Não somos obrigados a assistir a essa porcaria”, escreveu o deputado estadual Capitão Assumção (PSL-ES), nos comentários. Outros seguidores também escreveram mensagens parabenizando a decisão do governo.

Segundo o jornal O Globo, na tarde de quinta (22), o ministro Osmar Terra reiterou a postura de Bolsonaro, ao dizer que o governo escolherá os temas dos filmes que usarão dinheiro público.

“Nós temos que discutir que direcionamento tem que ter, que temáticas têm que ser trabalhadas no cinema brasileiro, até para não ter filme que vá receber dinheiro público e que não tenha interesse nenhum para a sociedade”, disse.

 

Quais os motivos da saída do secretário Henrique Pires

Henrique Pires, secretário especial de Cultura do Ministério da Cidadania, informou na última quarta-feira (21) que deixaria o cargo. A decisão foi tomada após a publicação da portaria que suspendeu o edital com a pré-seleção de filmes com temática LGBT.

“Isso [suspensão] é uma gota d’água, porque vem acontecendo. E tenho sido uma voz dissonante interna”, disse Pires, ao G1.

“Eu não concordo com a colocação de filtros em qualquer tipo de atividade cultural. Não concordo como cidadão, e não concordo como agente público, você tem que respeitar a Constituição”, continuou Pires ao G1.

Segundo o Ministério da Cidadania, ao contrário da versão divulgada pelo ex-secretário especial da Cultura José Henrique Pires, o cargo foi pedido pelo ministro na noite de terça (20), “por entender que ele [o secretário] não estava desempenhando as políticas propostas pela pasta”.

“O ministro se diz surpreso com o fato de que o ex-secretário, até ser comunicado da sua demissão, não manifestou qualquer discordância à frente da secretaria”, diz a nota.

Quem é o novo secretário de Cultura

Em seguida, o Ministério da Cidadania informou, em nota, que o secretário-adjunto e secretário de Fomento e Incentivo à Cultura, José Paulo Soares Martins, assumiria o posto de secretário especial de Cultura.

Segundo o jornal O Globo, Martins tem perfil discreto, é definido como técnico na área da cultura e como bom mediador em momentos de crise. Em 2016, ele trabalhou junto ao então ministro Marcelo Calero, na Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura (Sefic), responsável pela aplicação da Lei Rouanet ― atual Lei de Incentivo à Cultura ― e pela gestão do Fundo Nacional de Cultura.

O que o Ministério Público Federal está investigando

O Ministério Público Federal (MPF) do Rio de Janeiro abriu uma investigação para apurar vetos do governo federal às produções audiovisuais com temática LGBT em edital da Ancine. 

Segundo o MP, se confirmada, “tal ameaça ou discriminação podem importar em inobservância das regras editalícias, de caráter vinculante para a administração pública, bem como em discriminação constitucional vedada”.

Sendo assim, se confirmadas as informações de que o governo, por meio de uma portaria, censurou as produções, o caso pode configurar violação de regras de editais e discriminação. A atitude é proibida pela Constituição Federal.

O MPF também destaca que o edital, publicado em março de 2018, já estava na fase final, mas foi suspenso por ato do ministro Osmar Terra.

Comunicado do MPF informa ainda que foram expedidos ofícios ao Ministério da Cidadania e à Ancine solicitando informações sobre a suspensão do edital, que deverão ser respondidos em dez dias. 

PT e PSol se manifestaram contra portaria que veta edital

O PT divulgou que vai acionar o STF (Supremo Tribunal Federal) e a PGR (Procuradoria Geral da República) contra Bolsonaro por censura, homofobia e calúnia em duas ações.

“O partido denuncia os crimes de incentivo à homofobia e prática de censura, nos vetos à seleção de filmes para apoio da Ancine. E em interpelação criminal perante o Supremo Tribunal Federal (STF), o PT exige que Bolsonaro explique a falsa acusação de que o Mais Médicos teria sido usado pelo partido para ’fazer guerrilha’no País”, diz nota do partido divulgada pela assessoria de imprensa.

Na noite de quarta (21), o PSol protocolou um projeto de decreto legislativo para suspender a portaria assinada pelo ministro Osmar Terra.

Setor audiovisual acusa Bolsonaro de censura e está em alerta

A fala em que Bolsonaro sinaliza a vontade de criar um filtro ou até privatizar a Ancine ― o que não é possível, já que é uma agência reguladora ― repercutiu mal no setor. A categoria teme por desmonte do fomento ao audiovisual no País, assim como outras ações arbitrárias. “Se a Ancine não tivesse em sua cabeça toda um mandato [público], eu já tinha degolado todo mundo”, disse o presidente em live.

A Associação de Produtores Independentes do Audiovisual (API) afirmou que o presidente visa “censurar arte, projetos audiovisuais e filmes”. “Repudiamos tal atitude, pois entendemos que não cabe a ninguém, especialmente ao presidente de uma República democrática, censurar arte, projetos audiovisuais e filmes”, disse a organização por meio de nota. 

Na última semana, o setor também se sentiu atingido com a decisão do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF) de excluir três filmes – que indiretamente faziam críticas a Bolsonaro – da programação da Mostra Marginal, que será realizada em setembro no Rio de Janeiro.

Em comunicado, o CCJF justificou que “tem, dentre seus critérios estabelecidos para sediar eventos culturais e artísticos, o de não promover produções de cunho corporativo, religioso ou político-partidário, independentemente de que pessoa, instituição ou conceito ideológico esteja sendo defendido ou criticado”.

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