Sobrinhos de jesuíta espanhol assassinado chegam a MT para júri e lamentam 30 anos de impunidade

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Reprodução
CAMARA VG

Parentes, amigos e representantes de instituições da causa indígena reuniram-se na manhã desta terça-feira (29) na sede da Justiça Federal de Mato Grosso, em Cuiabá, para acompanhar o julgamento do delegado aposentado da Polícia Judiciária Civil Ronaldo Antônio Osmar. Ele é acusado de compor o grupo criminoso que assassinou à emboscada o jesuíta espanhol Vicente Cañas Costa, em 06 de abril de 1987.

Emocionados, os sobrinhos de Cañas lamentaram a morosidade da justiça brasileira, que acumula 4 mil e 360 páginas de um processo que se arrasta por 30 anos.

Desde as 8h desta terça-feira (29), representantes indígenas das etnias Miky, Paresi e Enawenê-Nawê marcaram presença na recepção da Justiça Federal. Sobretudo este último, que acolheu Vicente Cañas na última década de sua vida.

“Aprendemos muito com Vicente e ele aprendeu muito com a gente, as tradições, as caças, a pescaria, 'tudo junto' conosco”, relembra Iananshi, idoso da aldeia Miky, que veio do norte do Estado para Cuiabá, acompanhar o júri. “Vicente usava colar, cocar, era muito bom companheiro. Era muito ‘trabalho com nós’ Enawenê-Nawê, era um companheiro muito importante”.

Em outro momento, o índigena, em discurso acrescentou. “Era um rapaz bom. Estamos aqui, apesar de muita tristeza, ‘para os resultados’ bons que tivemos como a demarcação de nossa terra. Até agora sentimos saudades por ele não estar mais conosco”.  

Há 8 mil km de Cuiabá:

Para os familiares de Vicente Cañas Costa, que vieram do interior da Espanha para acompanhar o rito processual na capital mato-grossense, a tristeza soma-se ao sentimento de impotência. 

“Nem sei como dizer, é penoso, aguardar tantos anos…”, diz aos prantos Maria Cañas, sobrinha do jesuíta. “Gostaria que [o júri] tivesse uma boa resolução, mesmo sabendo que as probabilidades não são boas. Ao menos saber quem o assassinou e por qual razão. É muito importante para a família reconhecer a justiça e o trabalho de Vicente, um pouco até para prosseguirmos com o trabalho dele”.

José Angel Nunes Cañas, também sobrinho de Vicente, explica que chegou à Cuiabá há 04 dias e teve tempo para conhecer a realidade da disputa territorial violenta entre indígenas e agricultores em Mato Grosso. À reportagem, conta que há duas razões principais para sua presença na audiência.

“Primeiro de tudo, é que nunca havíamos estado em Mato Grosso, para realizar o ‘enterro’ com a família. Depois, para tentarmos fazer justiça, sobretudo a seu legado, como de muitos outros, que defendem os indígenas. Sabemos que há uma problemática muito grande aqui”, afirmou.

Sobre a sensação da família, que aguarda 30 anos pela resolução do crime, José se emociona. “É muito doloroso, não podemos fazer nada. Estamos impotentes, vivemos muito distantes daqui. Não temos opção. Todavia, estamos sempre em contato com as entidades defensoras dos indígenas e Vicente está em nosso coração, era uma grande pessoa, muito antes de tornar-se jesuíta, muito antes de vir ao Brasil”.

Sobre o que pôde conhecer nestes primeiros 04 dias no Estado, José avalia. “Sabemos que há muitos interesses no meio [deste assassinato]. A problemática dos assentados e a indústria agropecuária, os garimpeiros. Sabemos que não são os que efetivamente trabalhavam na terra [os culpados], são outros, os que de verdade geram o conflito. São poderes que muitas vezes nem sabemos quem são, são grandes indústrias e conglomerados industriais”.

A audiência:

O processo iniciou-se às 10h, sob comando do magistrado federal Paulo César Alves Sodré. Dos 17 pretensos jurados, 07 compuseram o conselho de sentença, após um agitado processo de acolhimento e exclusão de candidatos. Tanto o Ministério Público Federal (MPF), cuja banca é composta pelos promotores Alisson Cirilo Campos e Ronaldo Pinheiro de Queiroz, quanto a defesa, encabeçada pelo advogado Waldir Caldas, usaram do poder de barrar determinados jurados, por critérios subjetivos.

O réu Ronaldo Antônio Osmar, último sobrevivente dos 04 réus citados na sentença de pronúncia, entrou pelos fundos da sede da Justiça Federal. No auditório, demonstrou serenidade e foi assistido por dois familiares a todo momento da audiência.

Os júris selecionados para compor o conselho de sentença se dispuseram a passar a noite desta terça-feira (29) em hotel disponibilizado pela Justiça Federal e a permanecerem incontactáveis, entregando seus aparelhos celulares às autoridades policiais.

Justiça, ainda que tardia:

Aloir Passini, jesuíta da “Companhia de Jesus” e antropólogo pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), lamenta a retomada tardia do processo, mas vê importância no julgamento simbólico proposto pelo MPF. “Até agora não houve como se revelar judicialmente o que aconteceu, mas a luta dele continua hoje. Vivemos em um Estado de direito, mas os direitos indígenas estão sendo negociados, tanto na Câmara dos Deputados quanto na Assembleia Legislativa. O direito dos índios não são reconhecidos até hoje”.

Conforme o relato da acusação, Vicente Cañas foi morto em 06 de abril de 1987, enquanto se banhava as margens do rio Juruena, em local denominado “Caixão de Pedra”, na reserva indígena Salumã, em Juína, Mato Grosso. À golpes de porrete e facadas no abdômen, o defensor dos "Beneditinos da selva", termo que definida os índios Enawenê-Nawê, foi brutalmente assassinado. O corpo de “Kiwxí", como o povo adotivo o chamava, foi encontrado somente em 16 de maio. Seus pertences foram destruídos. O caso permaneceu sem julgamento por 30 anos.

O Crime e o Rito Penal

Objetos pelo chão testemunharam uma luta sangrenta que o espanhol travou pela vida naquele fatídico dia. Conforme os autos, datados de 2001, perto da vítima foi encontrado um barco furado, utensílios de barraca extraviados, chinelos jogados ao longe um do outro, e sangue, muito sangue. Por todos os lados, nas roupas, na burduna e nos óculos, quebrados com emprego de violência, segundo parecer técnico. 

“Seu corpo foi arrastado para fora da cabana para que os animais o comessem e destruíssem as provas. No entanto, foi encontrado 40 dias depois, mumificado e conservado. Na manhã do dia 22 de maio, ele foi enterrado como os indígenas, em sua própria rede, em um buraco cavado a 4 metros de distância de onde o corpo havia sido encontrado. Vários indígenas Enawenê-nawê, Rikbaktsa e Mÿky, juntamente com vários missionários e leigos, fizeram seu sepultamento”, relata o CIMI.

A denúncia do caso foi feita inicialmente pelo Ministério Público Estadual (MPE) e levada ao Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), em 30 de dezembro de 1993. Inicialmente a ação incluía as pessoas de Antônio Mascarenhas Junqueira e Camilo Carlos Óbici. Porém, por meio de Habeas Corpus (HC) junto a Segunda Instância do Tribunal Estadual, Mascarenhas foi retirado da lista de réus da ação penal. Pouco tempo depois, Camilo Óbici também teve seu nome retirado.

Pouco tempo depois, a justiça Estadual entendeu pela competência da Federal para julgar o caso, designando os autos para o Procuradoria da República, que apresentou sua denúncia inaugural somente em 27 de agosto de 1999.

A sentença de pronúncia, proferia somente três anos depois, em 07 de novembro, pelo magistrado Jefferson Schneider, da Segunda Vara da Justiça Federal, não apresenta dúvidas: trata-se de homicídio duplamente qualificado por emprego de emboscada e uso de arma branca cortante.

Ao lado da reserva indígena Salumã, onde Vicente Canãs fixava moradia à época, fica a “Fazenda Londrina”, de propriedade do acusado Pedro Chiquetti, o qual tinha por capataz o acusado José Vicente da Silva. Depoimentos trazidos aos autos confirmam um histórico de embate entre o produtor rural e os indígenas.

À par da disputa, figura o terceiro acusado, o delegado aposentado da Polícia Civil Ronaldo Antônio Osmar, que segundo a denúncia, era “conhecido na região por atuar em prol dos fazendeiros e madeireiros, pressionando índios e funcionários da Funai” a abrirem mão da disputa pela terra. O quarto e último acusado, Martinez Abadia da Silva, apresentado aos autos como “conhecido pistoleiro da região”.

As investigações, no início dos anos 2000, contou com a confissão do último acusado. À frente dos índios Paulo Tompeba e Adalberto Pinto, Martinez Abadia da Silva confessou ter recebido dinheiro de Ronaldo Antônio Osmar, à mando de Pedro Chiquetti, “para que juntamente com outros elementos, mediante emboscada, ceifasse a vida da vítima. A negativa de autoria não encontra respaldo nas provas do processo”, consta da sentença.

Razão pela qual, o magistrado Jefferson Schneider entendeu pela pronúncia, nos termos originais da denúncia, contra Martinez Abadia da Silva, Ronaldo Antônio Osmar, Pedro Chiquetti e José Vicente pelos crimes previstos no Artigo 121, § 2, I e IV do Código Penal, isto é: homicídio “I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;” e “à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossivel a defesa do ofendido”.

Olhar Direto.

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