Na tarde desta sexta-feira (28), durante cerca de 3h, seis soldados do Corpo de Bombeiros Militar de Mato Grosso revelaram ao Ministério Público Estadual (MPE) e ao magistrado Marcos Faleiros da Silva, da Sétima Vara Criminal de Cuiabá, o que de fato aconteceu na Lagoa Trevisan, em Cuiabá, no início da noite de 10 de novembro de 2016.
Os relatos, entretanto, foram além. Evidenciaram um ambiente contaminado por violência, humilhação, desrespeito e homofobia. Elementos supostamente encarnados na figura da tenente Izadora Ledur de Souza Dechamps, acusada de torturar até a morte o estudante/soldado Rodrigo Claro, de 21 anos.
“Pelo amor de Deus, eu não quero morrer”, gritava o jovem que se afogava, enquanto colegas o puxavam para cima, a fim de garantir fôlego e a instrutora o empurrava para baixo, a fim de dificultar a travessia que o levou à morte. Veja em detalhes o relato dos militares:
Arrolados pelas promotoras Januária Dorileo e Marcia Furlan e pelo advogado da família Júlio César Lopes da Silva, que atua como assistente de acusação, os seis bombeiros que participaram do fatídico 16º Curso de Formação de Bombeiros em Mato Grosso chegaram ao Fórum da Capital às 13h30. Em silêncio, evitaram a imprensa. Respeitosamente, cumprimentaram os pais do ex-colega, Jane e Antônio Claro.
O relato detalhado feito pelos seis é uníssono e apontam para um mal estar na relação entre a tenente e o estudante. Segundo narram, Ledur não tratava Rodrigo Claro como tratava os demais.
Os militares são unânimes ao apontar o motivo do tratamento "especial": um atestado médico apresentado por Rodrigo, alegando problemas no joelho resultantes de exaustivas corridas feitas durante o treinamento, que o impossibilitava de participar, naquela semana, dos exercícios de resgate aquático que seriam ministrados pela tenente.
“Ela ficou zangada (com o atestado apresentado). (Isso) irritou a tenente. Ela moveu um Termo Acusatório contra ele”, narra o soldado Arruda, ex-colega de Rodrigo.
A partir daí, as coisas desandaram. A tenente passaria a “pegar no pé” do estudante. “Ele já tinha dificuldade com água e mesmo assim ela (Ledur) preferia (ver) ele fazer, fazer, fazer, fazer o exercício até a exaustão! A tenente falava direto que 'a gente sofreria na Trevisan', 'que lá não tinha raia, nem borda', 'que seria somente nós'. Por isso eu falo que houve perseguição sim”, avalia Arruda.
A tragédia:
No fatídico 10 de novembro, na Lagoa Trevisan, Rodrigo mal conseguia esconder o nervosismo. Já conhecido em sua tropa por ter pouca experiência em natação, temia não conseguir terminar a prova em paz. “Ele viu a quantidade de água e… eu falava ‘relaxa, ninguém vai matar nós aqui não, fica tranqüilo que nós vamos passar. Passamos 08 meses juntos aqui e agora nada vai acontecer ‘com nós’ não’”, narra Arruda.
Naquele dia, os soldados teriam que atravessar 250m de lagoa, sem apoio das bóias (que eram obrigatórias), sem unidade de resgate, em caso emergência (que também era obrigatória) e sem barco motorizado para situações de urgência (que também é obrigatório). Quer dizer, “tinha barco, mas o motor estava quebrado, tinha só remo”, explica o soldado.
Para Claro, a prova representava grave risco. Segundo todos os ex-colegas concordam, o jovem ainda aprendia a nadar e possuía dificuldade até mesmo nas piscinas da Universidade Federa de Mato Grosso (UFMT).
Sobre os exercícios feitos na universidade, Arruda narra que também foi vítima da tenente Ledur. “Ela falava, ‘sossega, fica, aluno’, inúmeras vezes ela (me) xingava de lixão, dizia que eu não iria me formar, que dinheiro para pagar advogado eu tinha, frouxura, frouxo, bichinha, pois eu não conseguia sair dela. Ela tinha esse mal”.
Ainda sobre isso, o soldado Maiuson, terceira testemunha da audiência, confirma. Ledur era "rígida, severa e autoritária” e "usava palavras de baixo calão, xingava a gente de burro, (dizia) que a nossa turma era a mais burra que tinha”.
Todos os soldados ouvidos em juízo foram uníssonos quanto aos excessos da tenente Ledur. Conforme o soldado Sampaio, certa feita a ré determinou que os estudantes enfiassem uma bandeira no ânus. "Foi surreal". "Ela usou uma bandeira pra enfiar no órgão genital de um aluno. A fabricação da bandeira demorou, não foi culpa nossa e quando chegou ela falou que não precisava mais da bandeira, que era pra enfiar a bandeira no cu […] foi um caso de desrespeito sim”.
O exercício:
Prestes a iniciar os exercícios na Lagoa, a tenente Ledur zombava do iminente risco de morte naquela travessia, afirma o soldado Welton. "Ela dizia que se alguém morresse pelo menos ia dar nome a alguma escola ou unidade publica".
Já ao anoitecer, Rodrigo lançou-se à água, perto do cabo do Corpo de Bombeiros Francisco e do colega Arruda, que narra. “Na ida com a tenente, eu não tomei nenhum caldo, pois ela ficava sempre perto do Claro, sempre perto do Claro, sempre perto do Claro (insiste)… do meio para frente, começou a sessão de caldos no Claro”.
Prática não oficial nos treinamentos militares em água, o “caldo” é dado quando alguém superior em patente afunda propositalmente o estudante, durante o nado, afim de dificultar a travessia, causar afogamento e impossibilitar a respiração.
“Eu nadava um pouco atrás dele (Rodrigo), mas logo destoou (o ritmo) e eu acabei passando ele, que ficou para trás. Chegando quase… o Claro já estava meio ‘alopradão’ (em pânico) já, pois a tenente estava em cima dele, nas costas dele, afundava com ele. Ele queria sair da água, queria sair da água, sair da água, ele falava: ‘não, não quero isso mais não, está doendo minha cabeça, quero sair!”, conta Arruda.
Sobre esse momento, soldado Sampaio narra à justiça e ao MPE. "A todo momento ele dizia que não queria mais. Pedia pelo amor de Deus para ela parar, que ele não queira morrer. Mas ela não dava ouvidos".
Mesmo apontando para o sintoma grave de cefaléia, a tenente manteve a “sessão” de afogamentos em Rodrigo. “Disse que era para ele parar de ‘frouxura’, que era para voltar (para o nado), ele falava que não queria. O cabo Francisco então disse: ‘já que não quer, então saia, peça para sair, se você não quer mais ser bombeiro’. A tenente falou ‘não, não, você não tem escolha’, e foi para cima dele. Ele foi sair da água e acabou até botando a mão assim para que ela saísse da frente. A tenente ate disse: ‘você está doido? Está me agredindo? Vou chamar a Maria da Penha’. Claro estava ‘alopradão’, já dava para ver que ele estava ‘nervosão’, com medo dos caldos. Ele pediu umas três ou quatro vezes para sair”.
“Coronel Reveles estava atrás de nós, ele não via o que estava acontecendo, ou viu, e disse: ‘não, 30 (número de Rodrigo), aqui você não tem escolha não, você vai voltar para a água. Aí foi, ele colocou o pelotão em forma para ele voltar a travessia. Os meninos falavam (para Claro): ‘vamos, nós ‘te reboca’. Acabou que ele voltou. Ele foi rebocado (levado por outros para fora do lago). Ele batia as pernas, mas a tenente vinha nas costas dele. O soldado Maiuson até veio por baixo e subiu com ele e com a tenente junto, por cima, para (ele) tentar respirar um pouco. Ele (Rodrigo) estava ‘alopradão’, tentando bater os braços e as pernas…até…”.
Questionado pelo MPE, cujas promotoras se mostravam assombradas pela narrativa, o soldado Arruda confirmou que Rodrigo Claro estava se afogando, bebendo água da Lagoa Trevisan e queixando-se de fortes dores de cabeça. Vendo o desespero do estudante, o Sargento do Corpo de Bombeiros Xavier lançou uma bóia à água. “Mas a tenente mandou retirar, não era para deixá-lo com a bóia”, lamentou a testemunha.
Na praia, os bombeiros narram seus últimos momentos com o colega. “Foi a última vez que vi ele, eu até me arrepio de lembrar. Chegamos, atravessamos e ele continuava ainda na água, a gente insistia que (naquela altura) já dava pé. Jogaram a bóia, a tenente gritava: ‘tira a bóia, tira a bóia’. Foi então que ela grudou nele e o jogou no chão. (Após sair da água) Ele sentou-se no chão, meio cabisbaixo, cansado, reclamou de dores nas pernas e de tontura, estava abatido e de cabeça baixa. A tenente chamou ele no canto e disse: ‘para de frouxura, você é uma bichinha’, dizia que ele não era homem para vestir farda, que aquilo não era coisa de homem, era coisa de bichinha”, conta Arruda.
Aquele seria o último momento em que os colegas veriam Rodrigo Claro. O rapaz, de 21 anos, ainda sob fortes dores de cabeça e tontura, pegou sua moto e deixou o local. “Após toda instrução de salvamento aquático eu mandava mensagem para ele […] naquele dia ele não retornou”.
Tenente Ledur
A notícia:
“Quando cheguei em casa, fui lavar minha roupa e foi questão de 19h, 19h30, que soltaram no grupo: ‘o Claro está mal lá na Policlínica do Verdão’”, narra Arruda. Segundo os militares, a tenente Ledur e seus colegas de patente já demonstravam preocupação com o desenrolar dos acontecimentos e a repercussão do caso. “Primeiro ela mandou que o Claro estaria bem sim, que era para nós ‘rezar’ por nosso parceiro de farda, que tinha ‘dado não sei o que nele’, mas que ele estava bem”.
Na verdade, não estava. Naquele momento, Rodrigo Claro já havia sofrido duas convulsões e foi encaminhado às pressas e em estado crítico ao Hospital Jardim Cuiabá, onde permaneceu internado em coma. De lá, não sairia com vida. “Nós fomos proibidos de ir lá (ao Jardim Cuiabá para visitar o colega). Eles botaram um sargento. Falaram que era para evitar”, conta Arruda ao MPE.
“Aquele dia estava estranho, já a noite, por volta das 21h estava um ‘converseiro’ onde estávamos, nas tendas. As instruções ocorreriam durante toda a noite, mas eles cancelaram”, narra à testemunha, que afirma que algumas autoridades do Corpo de Bombeiros já se evadiam do local. “Eles nos dispensaram durante a noite toda, ali acho que eles já tinham a notícia do falecimento, mas para nós só foi informado entre 4h e 5h da manhã”.
Rodrigo havia falecido, anunciara o tenente, aos prantos, o treinamento do 16º Batalhão estava chegando ao fim. O MPE questiona da reação dos colegas naquele momento. Arruda desabafa. “Para nunca mais passar por aquilo, a gente era tipo uma família, ficávamos 24h juntos, sonhando em sair formado, os planos que tínhamos feito ainda em Sinop (onde vivíamos) e aí…uma pedrada dessa?”.
O que diz a medicina:
O médico neurologista Rogers Tomas Kleber Ribeiro foi a primeira pessoa a tentar socorrer Rodrigo Claro, naquela noite. Ele testemunhou na tarde desta sexta-feira (27) pela acusação.
Narra que na ocasião atuava em regime de plantão e foi acionado durante a noite, por volta de 20h e 20h30. "Diziam que tinha um paciente que estava na UTI e tinha tomografia com hematoma no crânio, no cérebro". As hipóteses levantadas, pelo sangramento verificado, eram de: aneurisma ou má formação artero-venosa. Ou seja, sangue dentro de uma cavidade do cérebro, o que causa entupimento da região.
"Até esse momento, eu não sabia nada do… Apenas disseram que houve um treinamento e ele passou mal", afirma. Rodrigo teria se mantido estável após o primeiro procedimento neurológico. A pressão do crânio era regular até o fim daquela noite.
Uma angiografia foi feita para determinar o motivo do sangramento no cérebro. O exame revelou: "nada", lamenta a testemunha. Ou seja, a vítima não sofria de qualquer má formação venosa. Restava a hipótese mesmo provável: um aneurisma.
Nos dias seguintes, vieram as primeiras instabilidades ligadas às demais partes do corpo.
A testemunha se nega a apontar uma causa para a tragédia, mesmo diante da narrativa do ocorrido naquele dia, feita pelo MPE. "Todo o stress pode ter aumentado a pressão, a descarga de adrenalina…". Isso poderia ter levado ao aumento da pressão cerebral, causando o rompimento do vaso, explica. "Era um sangramento grande, não era um sangramento pequeno não".
Para o médico, “quando se vê um paciente jovem com aquele tipo de sangramento" é improvável pensar em aneurisma. Para o profissional, Rodrigo morreu devido às complicações que danificaram o cérebro e rebaixaram seu nível de consciência.
Família e Amigos:
Do lado de fora da sala de audiências da Sétima Vara Criminal, restava o desespero de pai e mãe de um filho morto brutalmente. Jane e Antônio Claro não saíram de perto da sala, nem por um minuto. Ao lado deles estava o ex-aluno Maurício Júnior dos Santos, também supostamente vítima da tenente Ledur.
À imprensa, antes da audiência, narrou o desespero que teria passado nas mãos da ré. "Aquele curso era meu sonho. Eu queria muito vestir essa farda, mas essa mulher acabou com isso. Ela chegou a passar a corda em meu pescoço e me enforcar, após eu sair da água. Eu estava tremendo e passando mal, o curso havia sido pesado. E eu pedi pelo amor de Deus pra ela me soltar. Mas ela respondeu que eu estava louco, por pegar em oficial. Ela só me soltou porque viu muita gente olhando. Eu fiquei com marcas no pescoço e muita dor. Na época, pedi pra alguns amigos me ajudarem, mas ninquém quis. Todos tinham medo. Por isso desisti. No outro ano, ela agiu de novo… a vítima foi o Claro".
"Que a justiça prevaleça, essa é a expectativa que a gente vive há um ano e dois meses. A gente sabe que hoje nada do que possa acontecer trará nosso Rodrigo de volta, infelizmente está e a certeza que temos", lamentou a mãe, segurando o lenço com que enxugava as lágrimas.
O outro lado:
Olhar Jurídico entrou em contato na manhã deste domingo (28) com o advogado da tenente, Huendel Rolim, solicitando uma posição a respeito dos depoimentos, mas a reportagem não foi respondida.
Olhar Direto.