O último engraxate do calçadão: resistência e tradição nas mãos de Isaías Oséias
Aos 66 anos, Isaías Oséias da Silva mantém viva uma tradição que já foi símbolo das praças e rodoviárias de Cuiabá. Sob o sol do calçadão da Avenida Presidente Getúlio Vargas, ao lado da Estação Alencastro e em frente à Praça da República e à Catedral Basílica do Senhor Bom Jesus, ele resiste como um dos últimos engraxates em atividade na capital mato-grossense.
Natural de Cianorte (PR), Isaías começou a engraxar sapatos aos 10 anos, impulsionado pela necessidade. “A gente era pobre. Vender picolé não dava, porque lá é frio. A única opção era vender verdura ou engraxar sapatos. Nasceu, tem que trabalhar. Quem não trabalha, não come”, relembra.
Com o incentivo dos pais — o pai construiu sua primeira caixa de engraxate e a mãe comprou suas primeiras flanelas —, o menino começou sua trajetória em Maringá, no Paraná. Frequentava rodoviárias, estádios e até delegacias: “Ia para o campo engraxar chuteira, para delegacia engraxar coturno e também na rodoviária. Ponto de táxi também tinha muito cliente”.
Aos 13 anos, mudou-se com a família para Mato Grosso, onde percorreu diversas cidades antes de se estabelecer em Cuiabá. Apesar de outras tentativas profissionais, como padeiro e confeiteiro, e até dono de bar, foi como engraxate que Isaías encontrou seu verdadeiro ofício.
Tradição e técnica apurada
Logo às 7h, Isaías monta seu posto de trabalho com capricho: escovas, flanelas, tintas, graxas profissionais e óleos especiais. Tudo de “primeira linha”, como faz questão de frisar. “Não é graxinha de mercado, não. Essa aqui conserva a linha e os couros. Só coisa boa”, garante.
Durante os mais de 50 anos de profissão, acumulou histórias e clientes ilustres, como o deputado estadual Júlio Campos (União). “Engraxei o sapato dele, era R$ 5 e ele me deu R$ 20. Depois me deu mais R$ 100. Falou assim: ‘Pra você tomar uma Coca-Cola’. Quero que ele venha de novo”, conta, rindo.
Ainda assim, Isaías afirma que atende a todos, sem distinção. “Qualquer um, de mamando a caducando. Criança, mulher, homem. Todos que vierem aqui serão bem recebidos”.
Profissão em extinção
A cadeira que usa até hoje foi feita sob encomenda em São Paulo, quando ele tinha apenas 18 anos. “Se comecei por necessidade, hoje continuo porque gosto do que faço”, diz.
No entanto, o cenário mudou. O movimento, que já foi intenso — chegando a engraxar 19 pares por dia —, caiu drasticamente. “Passei a semana todinha sem engraxar nenhum sapato. De repente, chegam quatro, cinco pares. Mas tá fraco. Tomara Deus que melhore”, lamenta.
A renda obtida com o ofício ajuda a complementar a aposentadoria, que mal cobre o aluguel e os custos com alimentação. Mesmo assim, ele afirma que não pensa em parar: “Estou pensando é em pegar muitos freguês ainda”.
Para Isaías, a profissão só vai desaparecer “se acabarem com o couro e com a fábrica de sapatos e virar tudo tênis”. Segundo ele, enquanto houver funcionário público de sapato social, haverá engraxate.
Memória viva de um ofício
Isaías é um dos últimos de sua geração. No passado, dividia o calçadão com pelo menos três colegas. “Na Praça Alencastro, eram uns dez. A maioria já morreu. Só tem eu e mais um na praça”, conta.
O cuidado com os sapatos é levado a sério. “O sapato crono alemão, que vem da África para Itália, da Itália para Alemanha e da Alemanha para o Brasil, chega caríssimo. Se passar graxa ruim, acaba com tudo”, explica.
O serviço custa R$ 20 por par, com duas mãos de tinta e graxa. Isaías engraxa com o sapato no pé ou fora dele, conforme o cliente preferir.
Sonhos simples, mas essenciais
Apesar da longa jornada e da pouca valorização da profissão, Isaías mantém a esperança. Seus desejos são simples: uma cobertura para proteger o material de trabalho da chuva ou um espaço reservado na praça.
“Quando chove molha as flanelas, tem que botar para secar e já atrasa meu lado. Ou, se não, arrumasse um setor na praça, um cantinho que não perturbe ninguém”, sonha.
Com mãos firmes, olhar sereno e a voz de quem carrega décadas de histórias, Isaías Oséias segue firme. Não por teimosia, mas por amor ao que faz. Ele é, literalmente, o brilho que resiste em meio ao concreto da cidade.