A presidente da Ordem dos Advogados do Brasil detona “PL do Estupro” e diz que o projeto ignora a realidade das vítimas de violência sexual e viola direitos fundamentais

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Foto: PodOlhar
ALMT TRANSPARENCIA

A presidente da OAB Seccional de Mato Grosso, Gisela Cardoso, classificou o projeto de Lei 1.904/24, que propõe equiparar o aborto realizado após 22 semanas ao crime de homicídio simples, como uma gravíssima violação aos direitos humanos, desconsiderando, completamente, tratados internacionais que o Brasil é signatário, os quais objetivam proteger os direitos fundamentais das mulheres. Também sustentou que ignora a realidade das vítimas de violência sexual, impondo penalidade mais severa que a do próprio crime de estupro, perpetuando um ciclo de sofrimento. Manifestação institucional assinada pela presidente foi publicada oficialmente nos canais da Ordem nesta terça-feira (18).

O Projeto de Lei n° 1904/24, em epítome, propõe alterações ao Código Penal com vistas a equiparar o aborto realizado após 22 (vinte e duas) semanas de gestação ao crime de homicídio simples, inclusive, diga-se en passant, nas hipóteses permitidas no estatuto repressivo, isto é, nos casos de gravidez resultante de estupro (Art. 122 do CP). 

Isso representa, dentre outros, uma flagrante violação aos direitos humanos assegurados à mulher por tratados internacionais que o Brasil é signatário.

O artigo 3º da Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher) assegura que “Toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera privada”.

Por sua vez, o artigo 2º, alínea “c”, da referida Convenção, estabelece que, dentre outras, “… a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica, perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra”.

Portanto, punir uma mulher, vítima de abuso sexual, por interromper uma gravidez, não desejada e, ainda, fruto de uma violência, representa uma grave violência estatal, pois aumenta, e muito, o trauma psicológico já experimentado pela vítima. Desta sorte, o mencionado Projeto de Lei n° 1904/24 se amolda, em tese, ao que se encontra descrito no aludido artigo 2º, “c”, da Convenção de Belém do Pará.

Não bastasse isto, o aludido Projeto de Lei representa, ainda, uma afronta aos direitos humanos assegurados à mulher pelo artigo 4º, alíneas, “b”, “c”, “e” e “f”, ou seja, “b) direitos a que se respeite sua integridade física, mental e moral; c) direito à liberdade e à segurança pessoais; e) direito a que se respeite a dignidade inerente à sua pessoa e a que se proteja sua família; f) direito a igual proteção perante a lei e da lei.

Não se pode esquecer, ainda, que, em conformidade com o artigo 7º, da Convenção de Belém do Pará, os Estados signatários se comprometeram a, dentre outros:

c) incorporar na sua legislação interna normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, bem como adotar as medidas administrativas adequadas que forem aplicáveis;

e) tomar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher;

h) adotar as medidas legislativas ou de outra natureza necessárias à vigência desta Convenção.

Note que o dever do Estado, como destacado acima, é de adotar medidas legislativas para colocar, as mulheres, a salvo de leis e regulamentos que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher e não para criar leis que impliquem em violência contras as mulheres.

Por fim, os artigos 13 e 14 da Convenção de Belém do Pará deixa claro que, seja no âmbito interno, seja no âmbito internacional, nenhuma interpretação pode ser empregada para restringir ou limitar o gozo de direitos humanos assegurados às mulheres. A regra, portanto, é de que as leis do país não podem restringir ou limitar o que é assegurado pela Convenção de Belém do Pará e por outros tratados internacionais que ofereçam proteção igual ou maior às mulheres.

Por fim, é importante destacar que, conforme dispõe o art. 4º, II, da Constituição Federal, “A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios… II – prevalência dos direitos humanos”.

Portanto, por todos estes sólidos motivos, o Projeto de Lei n° 1904/24 viola convenção internacional que o Brasil é signatário e, também, a Constituição Federal.

Essa proposta não só ignora a realidade das vítimas de estupro, mas também impõe uma penalidade mais severa que a do próprio crime de estupro, perpetuando um ciclo de violência e sofrimento. Mulheres que já enfrentaram o trauma da violência sexual não deveriam ser mais uma vez vitimizadas pelo sistema legal. O direito ao aborto em casos de estupro é uma salvaguarda essencial para preservar a dignidade e a saúde física e mental dessas mulheres, uma vez que lhes oferece a chance de retomar o controle sobre seus corpos e suas vidas.

Além disso, o PL fere severamente a liberdade das mulheres, violando evidentemente seus direitos sexuais e reprodutivos. A equiparação proposta pelo projeto não leva em conta as circunstâncias individuais de cada caso e trata todas as situações de maneira homogênea e desumana. Ao desconsiderar a dignidade das mulheres, este projeto perpetua um julgamento moral e legal inaceitável que ignora as complexidades e os direitos intrínsecos das vítimas, configurando uma violação inconstitucional e inconvencional dos direitos fundamentais garantidos pela nossa Constituição e pelos tratados internacionais.

Para qualquer sociedade que se pretenda justa e equitativa, é essencial que as leis evoluam para proteger e respeitar a dignidade de todos os seus cidadãos, especialmente daqueles que já se encontram em situação de vulnerabilidade. O PL 1.904/24, ao inverter essa lógica de proteção e respeito, nos faz retroceder décadas em direitos sociais e humanos arduamente conquistados.

Portanto, é imperativo que se reconheça a inconstitucionalidade e a crueldade deste projeto de lei. O caminho para uma sociedade verdadeiramente justa passa pelo reconhecimento e respeito aos direitos humanos das mulheres, reafirmando seu direito à liberdade, à dignidade e à escolha sobre seus próprios corpos.

Diante dos argumentos apresentados, a conclusão que reflete a posição contrária ao Projeto de Lei 1.904/24 pode ser formulada da seguinte maneira:

Em face da relevância do tema e considerando a recente aprovação do Projeto de Lei 1.904/2024 sob regime de urgência, com notório vício formal, um parecer técnico foi emitido por uma Comissão de juristas ao Conselho Federal da OAB. Este parecer destacou que o projeto poderá ser apreciado pelo plenário da Câmara a qualquer momento. Além disso, a análise revelou que a proposta apresenta inconvencionalidades, inconstitucionalidades e ilegalidades, decorrentes de inúmeras violações apontadas exaustivamente.

Portanto, concluímos pelo total rechaço e repúdio ao referido projeto de lei, defendendo seu imediato arquivamento. Igualmente, posicionamo-nos contra qualquer proposta legislativa que vise a limitar a norma penal permissiva vigente, uma vez que a criminalização postulada configura uma gravíssima violação aos direitos humanos de mulheres e meninas, duramente conquistados ao longo da história. É imperativo que estas conquistas sejam preservadas e protegidas, reafirmando nosso compromisso com a justiça e a equidade em nossa sociedade.

Gisela Cardoso, presidente da OAB-MT
Lívia do Nascimento Moraes Quintieri, presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-MT

Fonte: Informações/ Olhardireto