Midia News
Era por volta de 15h do dia 30 de setembro de 2002. O empresário Sávio Brandão visitava as obras da nova sede do jornal Folha do Estado (já extinto), de sua propriedade, no Bairro Consil, em Cuiabá, com seu amigo Rodolfo Campos.
Cerca de 15 minutos depois, dois homens em uma motocicleta se aproximaram. O que estava na garupa sacou uma pistola e atirou 10 vezes em direção ao jornalista. Sete disparos atingiram Sávio Brandão, que não resistiu aos ferimentos e morreu na hora.
O crime brutal, que completou 15 anos no sábado (30), representou o começo do fim do crime organizado em Mato Grosso, chefiado pelo então comendador João Arcanjo Ribeiro.
Na época, Arcanjo já era investigado por outros crimes de assassinato, lavagem de dinheiro e contrabando, mas, diante do poderio financeiro e político que possuía no Estado, era considerado “intocável”.
Só que, desta vez – como no filme “Tropa de Elite II” -, o grupo criminoso havia tirado a vida de um jornalista. Com a repercussão internacional do assassinato, as forças de segurança se mobilizaram para dar uma resposta rápida ao caso.
Dois meses depois, foi deflagrada a Operação Arca de Noé, uma ação conjunta entre o Ministério Público Estadual, Ministério Público Federal, Procuradoria da República, Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Banco Central e Receita Federal, para prender Arcanjo e outras nove pessoas envolvidas em operações criminosas.
O ex-comendador não foi encontrado no dia da ação. Ele só foi preso no ano seguinte – 2003 -, no Uruguai.
Mobilização
Responsável por autorizar a prisão de Arcanjo, o então juiz federal Julier Sebastião lembrou que a Arca de Noé não foi deflagrada por conta do assassinato de Sávio Brandão.
A ação, segundo ele, visou a desmantelar o contrabando de máquinas caça-níqueis e jogos eletrônicos, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, evasão de divisas, agiotagem, entre outros crimes.
No entanto, conforme Julier, a morte do jornalista foi o estopim para a prisão de Arcanjo. O ex-comendador nega, até hoje, ter mandado matar o jornalista. Ele foi condenado a 19 anos de prisão pelo crime, em 2013.
“Foi um fator importante [o assassinato] para a mobilização das autoridades, diante da repercussão que teve o caso. A sociedade mato-grossense se sentia bastante intimidada pela força do crime organizado, não só pelo assassinato do jornalista, como de tantos outros homicídios que ocorriam em plena a luz do dia. Então, a morte, bem como o trabalho [investigação do MPE, MPF e Procuradoria contra Arcanjo], que já era feito em sigilo, possibilitaram na repressão ao crime organizado”, disse.
Julier Sebastião avaliou que, depois da realização da operação, Mato Grosso passou a viver uma nova situação.
"Quem viveu aquela época, antes dessa intervenção, sabe bem a diferença. Tínhamos um governador de fato [referindo-se a João Arcanjo]. Hoje, isso não existe: o nosso governador de fato é o governador de direito", disse.
Outra figura importante que contribuiu para desarticular o esquema de máquinas caça-níqueis e jogo do bicho em Mato Grosso foi o então procurador da República em Mato Grosso, o atual governador do Estado, Pedro Taques (PSDB).
Taques, inclusive, foi um das testemunhas de acusação contra Arcanjo, no julgamento pela morte do dono da Folha do Estado.
Ele afirmou que, na época, o jornal do empresário Sávio Brandão foi o único do Estado a divulgar um relatório da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) sobre a existência de uma organização criminosa liderada por Arcanjo Ribeiro.
"Al Capone de MT"
O atual governador foi autor de diversas denúncias contra o criminoso e participou, com mais três procuradores da República, 22 promotores de Justiça e 100 homens das polícias Rodoviária Federal, Civil, Militar e Federal, da Operação Arca de Noé.
Alair Ribeiro/MidiaNews
Pedro Taques: atuação decisiva como procurador da República, durante a Operação Arca de Noé
“A Folha do Estado divulgou que o ex-bicheiro seria o ‘AL Capone de Mato Grosso’. Foi o único jornal a divulgar esse relatório porque, naquela época, ninguém tinha coragem de falar o nome de João Arcanjo”, afirmou Taques.,
Ele ainda destacou a mudança nas características da criminalidade no Estado, apontando que a preocupação na Segurança Pública passou a ser outra.
Agora, voltada a questões de criminalidade urbana e a violência decorrente de convivência humana.
"Na época, a preocupação era a de salvar vidas, combatendo diretamente a criminalidade organizada, aquela que matava pessoas nas vias públicas, tinha bandos que financiavam o poder político e assim por diante", relembrou.
O governador na época dos fatos, Rogério Salles (PSDB), lembrou que teve que buscar ajuda no Ministério da Justiça para reestabelecer a segurança no Estado.
“Na audiência, relatamos os fatos que vinham ocorrendo. Relatei o meu sentimento de impotência como governador do Estado e da angústia que imaginava que estaria passando o cidadão que via as coisas acontecendo e o Poder Público não conseguindo dar uma resposta a altura”, disse.
“O ministro nos atendeu prontamente e garantiu que estaria determinando que a Policia Federal, a exemplo do que tinha ocorrido no Espírito Santo, realizasse em Mato Grosso uma operação para esclarecer os fatos e restabelecer a normalidade e o sentimento de segurança da população do Estado”, completou.
Questionado se o Estado estaria, de certa forma, "imune" de organizações criminosas, Salles disse acreditar que, no mesmo estilo da comandada por João Arcanjo, não impera mais no Estado.
"A criminalidade moderna é presente em todo mundo. Hoje, aqui no Estado, especificamente, do ponto de vista da criminalidade organizada, essa do estilo mafioso, de ligações nacionais e internacionais, já é um aspecto, basicamente, encerrado", afirmou.
O desfecho do crime
As investigações acerca do homicídio foram iniciadas pela Delegacia de Homicídios e Proteção a Pessoa, logo após o ocorrido. Entretanto, por determinação da Diretoria Geral da Polícia Judiciária Civil, o inquérito foi transferido para a Gerência de Combate ao Crime Organizado (GCCO), então sob responsabilidade do delegado Luciano Inácio.
Dois dos seis suspeitos do crime, o ex-policiais militares Hércules de Araújo Agostinho e Célio Alves de Souza, foram presos no dia seguinte ao assassinato de Sávio Brandão.
Em entrevista ao MidiaNews, o delegado Luciano Inácio contou que os dois militares já eram investigados por sete crimes contra a vida: cinco homicídios consumados e dois tentados.
Bruno Cidade
O delegado Luciano Inácio, então na GCCO, que presidiu o inquérito sobre a execução de Domingos Sávio
Hércules e Célio mataram, meses antes, o então sargento PM osé Jesus de Freitas, Fernandes Leite das Nevez, Nailton Benedito de Souza, Rivelino Brunini, Fause Rachid, e deixaram feridos Silene Neiva Freitas, esposa de José Jesus, e Gisleno Fernandes.
“Eles, inclusive, já estavam com mandado de prisão que eu havia pedido pela morte de José Jesus. Se não me engano, o crime [contra Sávio Brandão] ocorreu numa segunda ou terça-feira e, no dia seguinte, a gente já ia fazer a prisões deles. De forma que foi assim: uma falta de sorte. Até porque você tem duas pessoas sendo investigadas que seriam presas e, em 24 horas do cumprimento do mandado, eles cometem um crime bárbaro. Mas, jamais conseguiríamos evitar a fatalidade”, disse.
Conforme o delegado, no decorrer da investigação, a Polícia conseguiu prender outros dois envolvidos: Fernando Barbosa Belo e João Leite.
Luciano Inácio explicou que João Leite contratou o ex-policial militar Célio Alves, que, por sua vez, chamou o ex-cabo Hércules e Fernando Belo para cometerem o crime.
Segundo o delegado, os dois últimos estavam na moto que se aproximou de Sávio no momento do assassinato e que Hércules foi o autor dos disparos.
As investigações também apontaram, de acordo com Luciano Inácio, que Célio e Hércules vigiavam constantemente os passos do empresário. Um ponto de observação foi montado próximo a uma garagem de uma das empresas de Sávio. De lá, os suspeitos monitoravam os passos da vítima.
O detalhe é que, em um desses momentos, um aviãozinho de papel foi feito por Hércules e deixado caído no chão. Peritos encontraram o papel e o laudo técnico revelou haver impressões digitais do ex-cabo da PM, o que comprovou o envolvimento dele no crime.
Todos, assim como Arcanjo, já foram julgados e condenados pelo crime.
Célio foi condenado a 17 anos de prisão pelo crime e, Hércules, a 18 anos. João Leite foi condenado a 15 anos de prisão pelo homicídio.
Fernando Belo, também foi condenado a 13 anos de reclusão, mas conseguiu na Justiça a liberdade condicional. Fora da prisão, Fernando Belo acabou assassinado a tiros em 2010, no bairro Doutor Fábio, em Cuiabá.
Questionado como a Polícia Civil chegou à conclusão de que foi Arcanjo o mandante do assassinato, Luciano Inácio afirmou que, desde o início, ele figurava como suspeito.
“Ele era um inimigo natural do Sávio Brandão porque o jornalista publicava matérias sobre os esquemas dele de forma contundente, a ponto do Sávio chamá-lo, em uma das reportagens, de ‘Al Capone de Mato Grosso’”, disse.
“Durante a investigação, claro, surgiram outras provas, como de quebra de sigilo telefônico, depoimentos, que confirmaram que Arcanjo foi mesmo o mandante do assassinato”, completou.
Quando o delegado encerrou o inquérito sobre o homicídio e encaminhou o documento para o Ministério Público Estadual, mas precisamente em setembro de 2003, Arcanjo já estava preso no Uruguai, em decorrência da Operação Arca de Nóe.
Nesse interim, o ex-cabo Hércules resolveu confessar o crime.
"Milionário, mas sem poder"
O promotor de Justiça e ex-secretário de Estado de Segurança, Célio Wilson de Oliveira, lembrou que o militar conseguiu fugir da Penitenciária Central do Estado e, quando foi recapturado, em Rondônia, disse que poderia colaborar com a investigação, caso seus direitos fossem respeitados.
Ele pediu para ficar detido numa unidade da Polícia Militar e que a esposa e a filha não fossem submetidas à revista vexatória.
“O colocamos numa unidade da PM que ficava em frente à PCE e deixávamos que os familiares o visitassem, sem passar pelos constrangimentos que ele alegava. Diante disso, ele confirmou tudo sobre o assassinato do Sávio Brandão: como foi contratado, como o executou e quem foi o mandante. Tudo que ele contou coincidiu com a investigação que o delegado Luciano Inácio realizou”, disse o promotor.
“Ele [Hércules] também colaborou para a elucidação de muitos outros crimes envolvendo o João Arcanjo”, afirmou.
Para Célio Wilson, a volta de João Arcanjo para Cuiabá não representa mais perigo à sociedade.
“Acho que todo mundo fica um pouco preocupado com isso [volta do Arcanjo]. Ele ainda tem o poder que ele tinha? Não, com certeza, não. Acredito que hoje a Polícia Militar mudou muito. Aquelas pessoas que tinham proximidade com ele não estão mais na Polícia. Para ele reestabelecer aquele poderio que tinha, teria que ter o apoio dos agentes do Estado, o que não tem mais”, afirmou.
“Portanto, não tem mais ambiente e nem ele condições para retomar aquilo que ele tinha. Ele continua milionário, tem poder financeiro, mas não tem poder político. Ele, provavelmente, já deve, daqui uns ano,s conseguir o regime semiaberto. Então, acredito que não tem por que dele se envolver em outros crimes”, completou o ex-secretário de Segurança.