O desabafo do argentino resgatado do engarrafamento no Everest: “Não se pode fazer fila com 30° abaixo de zero. É a morte”

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© Fornecido por Arte Gráfico Editorial Argentino S.A. CAPTION ADDITION ADDS PHOTOGRAPHER'S NAME: In this photo made on May 22, 2019, a long queue of mountain climbers line a path on Mount Everest. About half a dozen climbers died on Everest last week most while descending from the congested summit during only a few windows of good weather each May. (Nirmal Purja/@Nimsdai Project Possible via AP)
CAMARA VG

Fonte: Portal MSN

Buenos Aires, 28 de maio de 2019

Birn tem dificuldade para falar. Faz uma pausa, fria, no fim de cada frase. Sua respiração parece a de um nadador olímpico quando emerge. Mas sua história está muito acima da água. Precisamente a 8.848 metros acima do nível do mar, no Monte Everest.

– Parece que você está com dor. Você não prefere fazer a entrevista depois ou que a gente converse pelo WhatsApp?

– Não, por favor, eu estou vivo. Tenho muita coisa para contar.

Ricardo está internado em um hospital de Katmandu, no Nepal, desde quinta-feira (23). Está com pneumonia. Um dia antes, 22 de maio, a montanha mais alta do mundo foi notícia por um inédito "engarrafamento".

Um engarrafamento de alpinistas que, aproveitando o clima bom, fizeram fila para chegar ao pico. Isso, diz Ricardo, foi o que quase o matou. Não foi a altura. Não foi a neve.

Ricardo, no hospital de Katmandú, de onde falou com o Clarín.

© clarin.com Ricardo, no hospital de Katmandú, de onde falou com o Clarín.

"Não se pode fazer fila, parado, literalmente, com 30 graus abaixo de zero. É a morte. Eu comecei a cuspir sangue. No começo eu hesitei, porque desta vez eu queria chegar até o fim. Mas tive que tomar a decisão de não continuar. Depois, já era diretamente descer para continuar vivendo", diz.

A pessoa que "hesitou" lá em cima não era um marinheiro de primeira viagem. Ricardo, que é professor de Educação Física na cidade argentina de Córdoba, faz parte do movimento 7 Cumbres, que busca atingir o pico da montanha mais alta de cada um dos sete continentes. Ele já conseguiu chegar a cinco. Esta foi sua segunda tentativa no Everest.

"Eu tentei há dois anos, mas houve um erro estratégico dos guias com os quais eu vim. Fiquei sem cilindros de oxigênio porque os guias não fizeram bem o trabalho deles de colocá-los ao longo do caminho. Eu comecei a perder a visão de um olho e meus dedos congelaram. Então tivemos que descer", diz.

Por causa desse erro ele ficou com um problema nos brônquios. A empresa que tinha contratado cobrou agora apenas US$ 30.000 dólares e ofereceu os serviços de um guia de elite nesta sua tentativa de escalar novamente. Uma escalada no Everest pode chegar a custar cerca de US$ 80.000.

A perigosa fila de alpinistas no Everest, onde alpinistas de diferentes nacionalidades morreram nos últimos dias. (Foto: Gesman TAMANG / AFP)

© clarin.com A perigosa fila de alpinistas no Everest, onde alpinistas de diferentes nacionalidades morreram nos últimos dias. (Foto: Gesman TAMANG / AFP)

"Desta vez foi diferente. Fui com um bom guia. Fizemos tudo direito. Fiz o treinamento de um mês e meio, passando pela Geleira de Khumbu, muito perigosa. Tem que fazer três vezes, até chegar no campo 3, a 7.200 metros de altitude. Aí dá para saber se a pessoa está em condições de continuar. E a minha aclimatação foi perfeita. Tomei o remédio e estava 100% preparado. Mas tive que fazer fila, parado. Infelizmente, o dia que eu escolhi para subir coincidiu com dia escolhido por mais 250 pessoas", diz.

Ricardo e seu guia, Chebbi Tipeka, de 43 anos e com muita experiência, começaram a escalada às 19h do dia 21 de maio, para chegar no pico às 22h. Não conseguiram chegar e Ricardo foi protagonista de "um dos resgates históricos do Everest".

Após duas horas de escalada, encontraram o primeiro engarrafamento na imensidão branca. "Não dava para acreditar. Tive que ficar meia hora parado no gelo, não era neve, era gelo. A 8.200 metros de altitude".

Falar em gelo não é um eufemismo. Esse lugar se chama zona da morte. "Você precisa se mexer. Sair dali. A gente vê como os outros começam a congelar. Eu comecei a tossir e a tosse só expelia sangue". Mas Ricardo resolveu não voltar atrás. Eram 22h.

"Continuamos. Mas eu via uma fileira de luzes (as lanternas dos capacetes dos montanhistas). Vi que ia ser muito complicado". Ricardo está falando do degrau Hillary. Ali foi tirada a foto que viralizou porque mostra o engarrafamento.

"Era uma infinidade de gente fazendo fila", diz Ricardo e questiona o fato de não existirem limites para as autorizações porque isso é um perigo para os alpinistas.

Ele chegou aos 8.400 metros de altitude, onde trocam os tubos de oxigênio e decidiu voltar. Em outras condições, mais três horas de escalada e chegariam ao topo. Nesse dia teriam demorado cinco horas. E sempre cuspindo sangue.

"Se não descia, ia morrer, como morreram vários", diz. Exatamente, até agora, morreram 11 pessoas nessa escalada do Everest. "Pensei que tinha quebrado uma costela pelo esforço para respirar", algo que pode acontecer nessas condições. Mas, finalmente, ele não teve um pneumotórax. Teve um edema de pulmão.

A partir do campo 4, começaram a descer. O guia o ajudou e cinco horas depois chegaram ao campo 3. Os helicópteros de resgate, porém, só chegam até o campo 2. Mas Ricardo não podia continuar a descer.

"Falei pelo telefone satelital com Erika, minha esposa, e ela falou com o dono da empresa para que fossem me resgatar. Ela fez de tudo para que chegassem lá onde eu estava", diz Ricardo.

Ele mesmo se aplicou uma injeção de dexametasona que o acalmou. E quando desmaiava o guia fazia o impossível para acordá-lo. Dormir nessas condições não é garantia de acordar. Ele também tinha pouco oxigênio.

"Às seis da manhã escutei o helicóptero", diz Ricardo. Como o helicóptero não podia aterrissar no campo 3, o piloto jogou uma corda de 30 metros que o guia prendeu no arnês de Ricardo. E ele levantou voo. Gritando de dor. Como se fosse um pacote, o piloto o levou a outro ponto, onde um socorrista se ajustou a ele e -já como dois pacotes- foram levados, suspensos no ar, até a base seguinte.

Ricardo vai voltar para Buenos Aires nesta semana.

Com 80 quilos, 10 quilos a menos, e talvez alguma nova sequela pulmonar. Erika, sua esposa, e seus filhos Camila, de 23, Agustina, de 21, Gael, de 13 e Simón, de 6, já o estão esperando.

– Você vai tentar novamente chegar ao pico do Everest?

– Não sei. Mas já provei que o meu corpo superou a parte extrema. Eu estava lá em cima. Freado. Fazendo fila, literalmente, com tanta gente.

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