Casais Trisais encaram preconceito em meio à proibição de união poliafetiva

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CAMARA VG

“Vocês dormem na mesma cama? O relacionamento é aberto? O sexo é sempre a três?”. São inúmeras as perguntas – e muitas vezes repetidas – que Íris de Freitas Ribeiro, Isane Costa de Farias e Igor Silva Almeida recebem nas redes sociais. Eles formam um trisal há dois anos e mantêm um perfil no Instagram (@nossatriiiade) sobre o assunto.

“A campeã, sem dúvida, é se a gente dorme na mesma cama, mas também recebemos perguntas sobre ciúmes e relatos de pessoas querendo migrar para algo não monogâmico”, comenta Isa.

Essa história começou quando Íris e Isa se conheceram na despedida de solteiro de uma amiga. Logo, elas se apaixonaram e resolveram viver esse romance.

Na época, Isa já namorava Igor, assim como Íris namorava outro rapaz. E o que seria um problema para muita gente foi algo comum para os casais, que já trabalhavam a questão da poligamia dentro da relação.

O quarteto começou em 2019 e acabou poucos meses depois, quando Íris e o namorado terminaram. A partir daí, o relacionamento se tornou um trisal em triângulo equilátero, ou seja, com todas as partes se relacionando entre si.

Como as partes já trabalhavam a questão do amor livre antes de se relacionarem, o ciúmes foi o menor dos problemas quando o quarteto virou um trisal. Segundo Íris, o maior desafio foi o sentimento de pertencimento, porque Isa e Igor já tinham uma relação de dez anos antes de sua chegada, o que implicava uma série de cargas emocionais e inseguranças.

“Acredito que o fato de eu ter me conectado com Isa primeiro e não ter me ligado com o casal antes dificultou o processo. Eu tinha medo. O pertencimento foi meu desafio, eu precisava me sentir parte disso e mesmo a gente gente se gostando muito, no cotidiano vinha essa carga do casal, essa pressão, mas que foi diluída rapidamente”, relata Íris.

No início da pandemia, Isa e Igor convidaram Íris para morar com eles. Nesse “intensivão“, baseando-se no respeito e transparência, o trisal precisou lidar com muitas lacunas sentimentais. Igor, inclusive, conta que questões que ele achava que estavam resolvidas voltaram à tona.

O ciúmes é um exemplo disso. Antes dado como extinto, se mostrou não tão resolvido como se pensava.

“Tive que trabalhar isso, mas sinto que nesse formato [trisal] temos uma rede de apoio maior para dialogar e lidar com as situações”, admite.

“Dei Match no Tinder com um casal”

O caso de Diego Gonçalves, Karina Matos e Sanny Rodrigues, que estão por trás do perfil @amordetrisal, é um pouco diferente. Diego e Sanny eram casados e já conversavam sobre amor livre. Após meses de amadurecimento e conversa, eles resolveram se aventurar em um ménage à trois – modalidade em que três pessoas participam do ato sexual.

A partir da experiência, notaram que eles não queriam apenas sexo. Mas a chegada de Miguel, filho do casal, adiou a busca por uma nova integrante afetiva, que só veio a acontecer três anos depois.

“Criamos um perfil no Tinder e começamos a caçar. Eu sou bissexual e Diego é hétero, então buscamos uma mulher”, conta Sanny.

Nessa jornada eles encontraram Karina, que, até então, nunca tinha se envolvido com mulheres, nem vivo uma relação não-monogâmica. Apesar disso, os três definiram a química do primeiro encontro como “surreal”.

A ideia de dividirem a mesma casa surgiu após os três passarem um final de semana inteiro juntos. O ciúme, mais uma vez, se tornou um desafio a ser superado dentro do relacionamento.

“Achavam que era p…ria e farra”

Além dos desafios inerentes ao formato da relação e à descoberta de sua própria sexualidade, Karina teve que lidar também com o elemento familiar. Seus parentes não receberam bem sua bissexualidade, muito menos o fato de ela integrar um trisal. Segundo conta, isso ainda é uma ferida e talvez não cicatrize tão cedo.

Sanny enfrentou problemas semelhantes, mas esbarrou em um julgamento ainda mais negativo: a sexualização do trisal.

“No começo todo mundo achou que era putaria, farra e que estávamos doidos”, revela.

Íris e Isa, da relação com Igor, também viveram situações do tipo. O afastamento da família colaborou para uma relação melhor, mas, ainda assim, está longe do esperado.

“Dizem que somos usadas pelo Diabo”

Na internet, entre curiosidades e pedidos de ajuda, seja para lidar com o ciúmes ou saber como incluir alguém na relação, ambos relacionamentos encaram o machismo em sua forma mais áspera.

“Dizem que estamos sendo usadas pelo ‘diabo’, que estamos enfeitiçadas, que o ‘capeta’ está trabalhando na nossa vida”, relata Sanny. “Falam que não temos Deus no coração, que somos comunistas e vamos para o inferno”, complementa Isa.

Os trisais atribuem ao patriarcado todo o preconceito que sofrem. Igor e Diego, por exemplo, homens cis de cada relação, não são tão alvo de críticas como as mulheres. Para eles, inclusive, estar em um trisal nem mesmo chegou a ser problema.

Igor conta que virou motivo de chacota no seu ambiente de trabalho. Ao saberem que ele tinha duas amadas, os colegas faziam piadas machistas e sexualizadas, o que o deixava frustrado, por não poder reagir como queria. Após pensar muito, ele passou a revidar: “Eu falava: ‘Parece que vocês não saíram da quinta série”.

Mais que um “bacanal de fim semana”

Para mostrar que uma relação a três é mais do que sexo, Diego, Karina e Sanny até fizeram uma cerimônia em 2021. A intenção, segundo contam, foi deixar claro para família e amigos próximos que o relacionamento se tratava de um compromisso, não um “bacanal de fim de semana”.

A cerimônia em si, apesar da beleza e amor envolvidos, foi realizada de maneira informal. Isso porque desde 2018 não é permitido o casamento poliafetivo no Brasil. Esse estilo de relacionamento, inclusive, pode implicar diversos problemas judiciais.

Antes, famílias compostas por três ou mais pessoas tinham direito ao reconhecimento em cartório. O procedimento era simples, eles se dirigiam ao órgão e pediam uma lavratura de escritura pública. Porém, em 2018, o Conselho Nacional de Justiça vetou a emissão dessas lavraturas, pois tinham efeito de união estável, ou seja, eram equiparadas ao casamento.

Para a Justiça brasileira, era contraditório existir união estável poliafetiva, visto que a Constituição Federal estabelece que, para haver vínculo conjugal, é necessário preservar o princípio da monogamia e o dever da fidelidade recíproca entre o casal. A proibição da bigamia é outro ponto crucial da Constituição que coloca em xeque a possibilidade de alguém ser casado com mais de uma pessoa.

Na prática, os cartórios não podem mais fazer este tipo de documento. Porém, de acordo com Laísa Schiefler, advogada especializada em Direito Familiar, nada impede os envolvidos em relacionamentos não monogâmicos busquem o Judiciário para reconhecer sua relação.

Segundo a advogada, essa realidade só poderia mudar se uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) fosse aprovada na Câmara dos Deputados e no Senado. Até lá, Laísa Schiefler aconselha que pessoas não monogâmicas planejem sua sucessão, para que todos os parceiros estejam assegurados em caso de alguma fatalidade.

“Eles podem contratar previdências, seguro de vida e colocar os cônjuges como beneficiários. Existem formas de garantir o conforto, pelo menos enquanto essa realidade não muda”, acrescenta.

Não existe fórmula, autoconhecimento é a chave 

A sexóloga e psicanalista Virginia Gaia orienta o diálogo aberto com uma “regra de ouro” no trisal. Segundo ela, é importante que cada parte se conheça e, acima de tudo, não entre neste tipo de relação compulsoriamente.

Decidida a viver esta experiência, a pessoa, como em qualquer outra relação, deve fazer acordos sobre o que pode e o que não pode. É importante levar os parceiros em consideração, mas também não se anular no processo.

Na convivência, o ciúmes dará as caras, mas o mais importante é lidar com ele. Sanny e Íris, por exemplo, dão o sentimento como algo resolvido em seus respectivos relacionamentos, mas para isso foi necessário muita conversa e compreensão.

Em meio aos sentimentos e inseguranças, é também necessário ter paciência.

“Se ao mesmo tempo aumenta sua rede apoio e sua vida sexual fica mais diversa – dependendo da formação de relação que você tenha – mais conversas estarão envolvidas, e mais pessoas para administrar você terá”, aponta Virginia.

Fonte: Terra

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