Juíza: “São 4 feminicídios; pegará mais de 50 anos com certeza”

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Foto: Ednilson Aguiar/TJMT
CAMARA VG

Mato Grosso ficou estarrecido nesta semana com a chacina de uma mulher e as três filhas em Sorriso. O crime bárbaro praticado pelo pedreiro Gilberto Rodrigues dos Anjos, de 32 anos, trouxe de volta para o centro do debate a possibilidade de prisão perpétua e até pena de morte no Brasil.

Mas para a juíza Ana Graziela Vaz de Campos Alves Corrêa, da 1ª Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, a pergunta que fica é: onde a rede de proteção à mulher falhou?

“Ele tinha mandado de prisão em aberto. Onde que esse sujeito passou, entregou o CPF e ninguém checou o mandado de prisão? Porque se ele parasse em uma blitz da Polícia Rodoviária Federal (PRF), da Polícia Militar, enfim, com certeza iria ser preso. A gente tem que pensar onde estamos falhando quando ocorrem esses crimes graves”, disse a magistrada, para quem a pena capital não resolveria o problema da violência.

Na opinião da magistrada, o criminoso pode pegar uma condenação pesada.

“Mais de 50 anos com certeza. Tem que olhar todos os crimes que ele praticou. São quatro feminicídios. A pena mínima de feminicídio é 12 anos. Então, só de feminicídio, o mínimo já dá 48 anos. Será uma pena muito alta”, afirmou.

Na entrevista, Ana Graziela defendeu legislação mais duras para crimes contra mulher e falou sobre a importância de ter politica pública para evitar novos crimes.

Leia os principais trecho da entrevista:

MidiaNews – Como mulher, o que sentiu ao ler notícias a respeito do crime bárbaro que aconteceu em Sorriso nesta semana?

Ana Graziela Vaz de Campos – É chocante para todas nós mulheres. Por mais que não se trata de um crime de violência doméstica familiar, é feminicídio por questão de ódio contra o sexo feminino. As quatro mulheres foram mortas pelo simples fato de serem mulher.

“As quatro mulheres foram mortas pelo simples fato de serem mulher”.

Ele entrou naquela casa já com o intuito de fazer alguma coisa, me parece que era com a mãe. A mãe reagiu e ele acabou praticando ato sexual com a mãe e as duas filhas mais velhas. Por fim, matou a mãe e as três filhas.

MidiaNews – Acredita que ele seja um psicopata?Ana Graziela Vaz de Campos  Algum distúrbio tem. Uma pessoa normal, não faz isso. É uma pessoa que já tinha passagem pela polícia. Não tem laudo, não sou psiquiatra para dizer se é psicopata ou não, mas tudo indica que sim, só pelo jeito que foi executado esse crime, a crueldade que foi esse delito.

MidiaNews – Com base na experiência da senhora, qual deverá ser o tamanho da pena desse assassino?

Ana Graziela Vaz de Campos – Mais de 50 anos com certeza. Tem que olhar todos os crimes que ele praticou. São quatro feminicídios. A pena mínima de feminicídio é 12 anos. Então, só de feminicídio, se ele não fosse reincidente, se ele tivesse a ficha limpa e não tivesse nenhuma outra qualificadora, o mínimo já dá 48 anos. Será uma pena muito alta.

MidiaNews – Desde a segunda-feira, em Mato Grosso muitas vozes se levantaram defendendo a pena de morte para crimes como aquele. Como a senhora se posiciona em relação à pena de morte?

Ana Graziela Vaz de Campos – Pena de morte não vai resolver o problema. Temos que ter políticas públicas, começando nas escolas para ensinar os meninos e as meninas que somos seres humanos e não temos distinção. Todos merecem ser tratados com respeito. Então, vai demorar uma, duas gerações para a gente ver o resultado.

Atualmente, já tem a semana obrigatória de combate à violência doméstica familiar nas escolas, onde as crianças discutem, mas em casa também precisam fazer esse papel.

Se você tem dois filhos, uma menina e um menino, é obrigação dar tratamento igual aos dois. Eu não posso colocar a menina para fazer os serviços domésticos e não colocar o menino também. Tanto a menina quanto o menino têm que ser educados para saber que somos iguais, que temos os mesmos direitos e as mesmas obrigações.

MidiaNews – Ocupar os mesmos espaços

Ana Graziela Vaz de Campos – A mulher não quer ocupar o lugar do homem na esfera profissional. A gente só quer o nosso espaço. Hoje, a maioria é ocupada por homens. Na Assembleia Legislativa temos apenas uma deputada. Na Câmara de Vereadores de Cuiabá, hoje temos  três vereadoras, mas na legislatura passada não tinha nenhuma. Era a única Capital do Brasil que não tinha nenhuma vereadora.

Então, é uma luta que tem que começar desde pequeno para a mulher saber que pode chegar onde ela quiser, que ela não é criada tão somente para cuidar da casa e dos filhos. Ela tem direito de estudar, tem direito de se formar e de ingressar no mercado de trabalho e ganhar o mesmo salário para as mesmas posições.

Ana Graziela

MidiaNews – Mas não é frustrante ver que muitos assassinos que cometeram crimes bárbaros contra mulheres voltam para as ruas pouco tempo depois? Recentemente, por exemplo, o empresário Carlos Alberto Gomes Bezerra, que cofessou ter assassinato a ex e o atual companheiro dela em janeiro deste ano, foi colocado em prisão domiciliar. 

Ana Graziela Vaz de Campos –  Eu decidi esse caso em primeiro grau e neguei a prisão domiciliar, porque a gente tem grande parte da população carcerária com o mesmo problema de saúde e eles continuam reclusos. Por isso, entendo que não caberia por causa desse motivo, de diabetes e pressão alta, mas é uma decisão que cabe recurso e tem que aguardar o recurso para ver se vai ser mantido ou não. Do resto, prefiro não me pronunciar.

MidiaNews – A senhora disse que a pena de morte não resolve. Mas defende uma legislação mais dura e eficaz em crimes contra a mulher?

Ana Graziela Vaz de Campos – Sim, tem que ter penas mais duras. Inclusive, está tramitando no Congresso a tipificação do feminicídio como crime próprio. Hoje, o feminicídio é uma qualificadora do homicídio. E ele sendo crime próprio, a pena pode chegar até a 40 anos. Passando essa lei, vai ser a pena mais alta que a gente vai ter no Código Penal.

Eu falo que violência doméstica é muito delicada, porque se a gente sofre uma violência na rua, um assalto, é frustrante, é traumático, mas você nunca mais vai precisar olhar para o seu agressor, conviver com ele.

Agora, na violência doméstica, a mulher, muitas vezes, tem filho com o agressor, e vai ter que ter contato com aquele cidadão para o resto da vida.

Midia News – A ONU classifica a lei Maria da Penha como a terceira melhor lei do mundo no combate à violência doméstica, perdendo apenas para Espanha e Chile. Como avançar para dar mais proteção às vítimas?

Ana Graziela Vaz de Campos – A lei é excelente só que ela não é executada da forma correta no Brasil. Falta muita política pública e muito investimento do Executivo nessa área.

A gente precisa orientar a população para que a mulher peça ajuda e reconheça que está sofrendo violência doméstica familiar.

Temos que ter uma atenção maior também com a população rural. Barão de Melgaço, por exemplo, não tem delegacia de polícia. A mulher da zona rural, não tem vizinho que vai escutar os gritos dela. Pecamos muito nisso. Aqui em Cuiabá, eles fazem um trabalho brilhante só que são cerca de quatro policiais para atender 600 mil habitantes. É muito pouco.

Daria para fazer uma ronda preventiva, pegar os bairros com mais denúncias. Temos isso em Minas Gerais. Tem muita política pública para se trabalhar e para diminuir as estatísticas.

Midia News -Também precisa orientar o homem?

Ana Graziela Vaz de Campos – Sim. Muitas vezes o próprio homem não se enxerga como um agressor.  Os homens que passam aqui, muitas vezes, é uma pessoa benquista na sociedade, é um ótimo profissional, mas só quem convive, quem está entre quatro paredes, conhece a personalidade daquela pessoa. E só punir, só pena de morte, não basta. A gente precisa educar e tratar. É ótimo quando a mulher quebra o ciclo, denuncia e rompe aquele relacionamento. Mas, e esse homem? A gente tem que tratá-lo, porque ele vai continuar existindo. E se ele não for tratado, infelizmente vai voltar a achar que está no direito de praticar certos atos de violência contra a mulher.

“Esse ano, desconheço caso de femicídio com vítimas que possuem medida protetiva em Cuiabá”.

MidiaNews – E quando há casos em que a mulher sofre violência, mesmo com a medida protetiva, não significa ineficácia?

Ana Graziela Vaz de Campos  É uma ineficácia do sistema, mas é a exceção. Esse ano, desconheço caso de femicídio com vítimas que possuem medida protetiva em Cuiabá.

Nós temos também o aplicativo SOS Mulher. Se o agressor se aproximar, ela aperta, vem a viatura mais próxima da sua localização e muitas mulheres já foram salvas por esse aplicativo.

Infelizmente, temos apenas quatro municípios que têm o aplicativo: Cuiabá, Várzea Grande, Rondonópolis e Cáceres. Então, seria interessante ter, pelo menos, nas 30 maiores cidades do Estado. É uma ferramenta que salva.

MidiaNews – Há poucos dias, a apresentadora Ana Hickmann denunciou ter sido vítima de violência doméstica. Acha que atitudes deste tipo, vindas de pessoas públicas, podem estimular outras mulheres a fazerem o mesmo?

Ana Graziela Vaz de Campos – Sim. A mulher que está mais vulnerável, às vezes, acaba achando que isso acontece só com ela, porque não tem nível superior, não tem emprego bom, mas não.

Violência doméstica acontece em todos os bairros, em todas as classes sociais e em todas as profissões. Temos vítimas desde empregadas domésticas até médicas, juízas, advogadas. Mão é motivo de vergonha, ela é vítima e tem que pedir ajuda às autoridades.

Até sexta-feira passada, Mato Grosso tinha 33 casos de femicídio. Em três dias, tivemos quatro mulheres mortas em Sorriso, uma em Querência e uma em Lucas do Rio Verde. Então fomos para 39. Já está quase chegando às 44 do ano passado.

Mas não são só 39 vidas destruídas. São 39 famílias que se foram. Não é uma estatística. Dessas vítimas, quantas ficaram órfãos? São famílias destruídas que precisam também de política pública. A vítima não é só aquela que morreu, vítima é família inteira.

MidiaNews – A apresentadora teve o pedido de separação negado pela Vara de Violência Doméstica e Familiar de São Paulo, sendo encaminhado para a Vara de Família. Qual impacto dessa decisão na vida da mulher vítima de agressão?

 Ana Graziela Vaz de Campos –  Mato Grosso é exemplo para o Brasil em relação a isso. Aqui a Vara de Violência Doméstica e Familiar tem competência hibrida, plena. Aqui, além da medida protetiva, ação penal, se a vítima quiser divorciar, ela divorcia, se ela quiser uma indenizatória porque ficou tantos dias sem  trabalhar em decorrência da violência doméstica, ela não precisa ir em outro juízo, ela passa pelo mesmo juízo.  Não precisa ficar repetindo a mesma história.  Com isso a gente diminui a violência institucional e o tempo que a mulher perde com deslocamento para passar de magistrado em magistrado. É o único estado do Brasil que tem a competência híbrida nas cidades que têm várias especializadas, que é Cuiabá, Várzea Grande e Rondonópolis.

Se ela é vítima de violência, por que eu vou obrigar essa mulher a ficar casada, esperar uma audiência de conciliação, uma sentença final para dar o divórcio? Eu entendo como que é mais uma violência.

MidiaNews – Recentemente, um influencer digital foi preso apenas pela palavra de uma mulher que disse ter sofrido importunação sexual. Mas imagens divulgadas posteriormente mostraram que não houve a tal importunação. Como devem agir os operadores do direito para evitar injustiças em casos de violência contra a mulher?

“É uma exceção à regra mulheres que usam todo o sistema da polícia, da Justiça para prejudicar uma pessoa”.

Ana Graziela Vaz de Campos – É uma exceção à regra mulheres que usam todo o sistema da polícia, da Justiça para prejudicar uma pessoa. Hoje é bom quando o crime acontece na rua porque geralmente tem uma câmara, uma pessoa filmando.

As absolvições que ocorrem em relação à violência doméstica familiar são porque a mulher desistiu ou mudou a versão. Na violência doméstica familiar, vale muito a palavra da vítima. Antes a nossa palavra não valia nada, ninguém acreditava. Mas não é porque ela falou que o homem será condenado, não é assim. A gente vai olhar todo o conjunto. Não é só a palavra da vítima, mas a palavra da vítima, sendo coerente, já basta para uma condenação.

MidiaNews – A senhora decidiu casos polêmicos envolvendo violência contra a mulher, como o do empresário Carlinhos Bezerra e do advogado Nauder Andrade. Sem entrar em detalhes do processo, como é para a senhora se deparar com casos dessa relevância e com tamanha violência?

Ana Graziela Vaz de Campos – A gente não julga pessoas, julga fatos. A gente é imparcial e tenta ver onde estamos falhando como rede de proteção a mulher. Então toda vez que ocorre um fato grave, a gente tem que ver onde falhamos.

O caso de Sorriso, por exemplo, ele tinha mandado de prisão em aberto.  Onde que esse sujeito passou, entregou o CPF e ninguém checou o mandado de prisão? Porque se ele parasse em uma blitz da Polícia Rodoviária Federal (PRF), da Polícia Militar, enfim, com certeza iria ser preso. A gente tem que pensar onde estamos falhando quando ocorrem esses crimes graves.

E também os crimes pequenos, quando são recorrentes, e deixam marcas muitas vezes para sempre na vida daquela mulher e também das crianças. A criança que vive num lar doente, a tendência, a hora que crescer, infelizmente, é vir parar no Fórum. As meninas como vítimas. Os meninos quando são pequenos, quase todos ficam do lado da mãe, mas, infelizmente, quando crescem, seguem outro caminho.

Nós temos que cuidar da família. Quando a família falha, a sociedade falha também. A violência doméstica não é problema só meu, não é problema só de nós mulheres, é um problema de todos. Todos temos que lutar. Não é uma guerra de homem contra mulher. Nós temos que trabalhar juntos para tentar salvar as famílias e para ter uma sociedade melhor e mais justa.

 

 

 

Fonte: MidiaNews

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