“Quem dirige bêbado é tão bandido quanto quem mata ou estupra”

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CAMARA VG

Um dos idealizadores da Operação Lei Seca em Mato Grosso, o delegado Christian Cabral, da Delegacia Especializada em Delitos de Trânsito (Deletran), diz que ainda há uma grande resistência dos motoristas de Cuiabá e Várzea Grande a obedecerem o que diz o Código de Trânsito.

 

O delegado está à frente da investigação do atropelamento do verdureiro Francisco Lúcio Maia, 48 anos, na Avenida Miguel Sutil, no dia 14 de abril. O carro era dirigido pela médica Letícia Bortolini, que, além de não prestar socorro, estaria dirigindo sob efeito do álcool.

 

Conforme o delegado, as pessoas ainda têm resistência à abordagem neste sentido. “É uma frase comum que nós ouvimos: ‘Eu sou trabalhador, pai de família’. Mas uma pessoa que se comporta às margens da lei é tão bandida quanto aquela que mata, que estupra, que lesiona, que ameaça e que calunia”, diz.

 

Na entrevista, Cabral ainda aponta as deficiências da delegacia para realizar as operações da Lei Seca, e explica como a falta de infraestrutura no trânsito também contribui para os os acidentes.

 

Ele ainda comenta sobre a nova legislação, que entrou em vigor na quinta-feira (19), estabelecendo aumento da pena para quem mata ou fere no trânsito sob efeito de álcool.

 

Confira entrevista na íntegra:

 

MidiaNews – Na última semana, houve a mudança na legislação, elevando a pena para quem mata no trânsito para até 8 anos de prisão. Como funciona essa nova legislação?

 

Christian Cabral – Muito está se falando sobre a embriaguez, mas continua tudo igual. A pena é de seis meses a três anos e a multa continua sendo R$ 2.934,70. O que muda é a pessoa, sob efeito de álcool, se envolver em acidente com vitima com lesão grave ou gravíssima ou uma vítima que vem a óbito.

 

Ela também interfere no crime de racha e o conceito do crime. Na redação anterior, o crime de racha era só aquela disputa de velocidade. E agora a lei passa enquadrar também como racha a conduta daqueles que realizam manobras perigosas ou de exibição que coloca em risco a incolumidade pública ou privada. 

 

O famoso “zerinho”, os empinamentos sobre veículos de duas rodas ou coisas similares.

 

MidiaNews – No caso da médica Letícia Bortolini, ela será julgada pela legislação anterior?

 

Christian Cabral – Sim. Nesse caso específico da médica, se ela tivesse cometido o crime neste fim de semana, ela se enquadraria na lei nova. A lei muda todo o cenário. Ela escapa da lei nova porque entrou em vigor a partir da zero hora de quinta-feira (19). Tudo que aconteceu pra trás fica na lei antiga.

 

MidiaNews – O que muda na punição com essa nova lei?

 

Christian Cabral – Por exemplo, nós tivemos o caso da Letícia, que se envolveu em um acidente e culminou em óbito – não vamos entrar na questão da omissão de socorro e da fuga do local.

 

Para esse caso da Letícia, acidente culposo que termina em óbito, antes tinha pena de detenção – uma pena muito simplória. A pessoa nunca termina o processo pegando uma pena de encarceramento. Ela vai sempre ter a pena convertida. 

 

Na nova lei, essa mesma conduta passa a ser apenada com cinco a oito anos de reclusão. Oito anos de reclusão é uma pena para crimes gravíssimos, como sequestro. E quando acontece a lesão, hoje, a pena vai de um a dois de detenção. Com a nova lei, passa a ser de um a cinco anos de reclusão.

 

MidiaNews – Para o senhor, essa mudança é positiva? Tem o poder de inibir esse tipo de conduta? 

Alair Ribeiro/MidiaNews

Christian Alessandro Cabral 18-04-2018

Delegado Christian Cabral acredita que nova legislação trará maior sensação de "justiça" para as vítimas de crimes no trânsito

 

Christian Cabral – É extremamente positiva. Primeiro pelo aspecto educacional, porque as pessoas ficam temerosas em se sujeitar a uma pena dessa. E segundo pelas facilidades que traz à instrução processual. Com uma pena dessas, é possível, no curso da investigação, requerer medidas cautelares, como quebra de sigilo telefônico e telemático. 

 

No caso da Letícia, muito se falou que nas redes sociais dela e do esposo havia fotografias no evento [Festival Braseiro] fazendo consumo de álcool. A nova legislação permite o acesso essas informações e ainda permite a prisão preventiva, que muito se discutiu nesse caso da Letícia. 

 

A lei, no caso dela, não aceita que a pessoa responda o processo presa. Ela sempre vai responder em liberdade. Com essa nova pena, as pessoas podem ficar presas desde o momento do crime e continuarem presas durante a instrução. 

 

E o mais especial de tudo é o final, principalmente para as vítimas: você tem a certeza que ao final do processo a pessoa responderá ao crime cumprindo pena privativa de liberdade. O que não acontecia antes. Quando isso não acontece, é bastante frustrante para nós, operadores do direito, e revoltante para as vítimas e parentes.

 

MidiaNews – Por que, apesar de toda a legislação e das campanhas educativas, as pessoas continuam bebendo e dirigindo?

 

Christian Cabral – A gente fica bastante preocupado com isso, porque o Código Brasileiro de Trânsito está fazendo 21 anos este ano – e é muito tempo. No início, na redação primitiva dele, as penas e multas eram bastante brandas, pois partia-se do pressuposto que o trânsito não era um local para cometimento de crimes. 

 

E no trânsito, é caráter universal, qualquer pessoa pode ser vítima ou culpada de um acidente, por consequência de um crime de trânsito. Com o passar do tempo e a resistência dos condutores em se amoldar às novas diretrizes da lei, e com o advento cada vez maior na violência no trânsito, foi necessário aplicar alguns endurecimentos na lei. 

 

A multa hoje para embriaguez ao volante é altíssima: R$ 2.934,00. E as penas de prisão, previstas nos crimes, foram sendo exacerbadas, até que hoje nós chegamos a esse patamar de oito anos de reclusão. Tudo isso por causa da resistência das pessoas em mudar o comportamento e se adequar.

 

MidiaNews – Não falta um pouco mais de fiscalização? Como mais blitzes com testes de bafômetro…

Alair Ribeiro/MidiaNews

Christian Alessandro Cabral 18-04-2018

Delegado admite que falhou em não realizar blitz próximo ao evento em que a médica estava antes de atropelar o verdureiro

 

Christian Cabral – O projeto Lei Seca, que criou as operações integradas, tem quatro anos de existência. Até um ano e meio atrás, nós só realizávamos operações Lei Seca em Cuiabá. Nos outros 140 municípios de Mato Grosso não havia, porque menos de 10% dos Municípios tinham etilomêtros [bafômetros].

 

Ainda há outra problemática, além do etilômetro, que é uma prova técnica. É necessária outra prova técnica que é o exame de alcoolemia, feito com base no sangue coletado da pessoa. 

 

Mas aqui no Estado o único lugar que realiza esse exame é a Politec de Cuiabá. E em junho fará dois anos que esse equipamento está fora de operação. Então, para que haja fiscalização, é preciso haver recursos humanos e materiais – e nós temos essas dificuldades.

 

O projeto Lei Seca sai dessa dificuldade. Reconhecendo essa dificuldade, ele foi criado para juntar os baixos recursos materiais e humanos da Polícia Cívil, da Polícia Militar, com as das secretarias municipais de Trânsito, e você conseguir fazer um corpo suficiente para realizar uma operação com a frequência e intensidade necessárias para poder mudar comportamentos. 

 

Apesar de ainda serem muito tímidas essas operações – conseguimos fazer no máximo uma por semana, o que é pouco se formos ver a frota e a violência na Capital -, já percebemos alguns resultados no que diz respeito à mudança de comportamento. 

 

Você sai hoje à noite nas cidade, principalmente em dias de show, e vê muitos táxis, motoristas de aplicativo e perueiros trabalhando. Isso não acontecia há quatro anos. Era raríssimo você ver essa situação. 

 

Só que fora desses horários, temos também incidência. É o caso da Letícia. Não foi durante a madrugada. Nosso Estado e nossa Capital, especialmente, são muito pobres em opção de lazer. E a opção maciça são os churrascos, pescarias… Tudo isso regado a muita bebida alcoolica. E aí você acaba contribuindo para que esses números continuem sempre altos e preocupantes.

 

MidiaNews – O senhor ouve muitos relatos de quem bebeu e acabou cometendo um crime ou uma infração muito grave. O que essas pessoas dizem em geral? Como justificam a atitude?

 

Christian Cabral – Esse é outro aspecto bastante frustrante para gente. Muitas vezes os condutores dizem que nós, fiscalizadores, deveríamos estar procurando bandidos. Eles têm uma dificuldade muito grande de entender que seu comportamento os coloca à margem da lei e na condição de bandidos – de pessoas que infringem a legislação e são criminosas. 

 

E a frase comum que nós ouvimos é: ‘Eu sou trabalhador, pai de família’, etc. Mas uma pessoa que se comporta às margens da lei é tão bandida quanto aquela que mata, que estupra, que lesiona, que ameaça, que calunia.

 

MidiaNews – Há comentários acusando o verdureiro Francisco Maia de atravessar a Miguel Sutil fora da faixa, e por isso ele também teria culpa pelo acidente. Como isso é tratado?

 

Christian Cabral – O acidente acontece quando há uma conjugação de culpas. Se não houver desatenção de ambos os lados, nunca vai acontecer. Mas a conduta preponderante é a daquela pessoa que está sobre o veículo automotor. Se ela estiver dirigindo com prudência, com cuidado, com habilidade, consegue evitar um acidente mesmo diante de uma conduta de imprudência e descuido de uma outra pessoa.

 

MidiaNews – E o que falta para as pessoas entenderem que o carro também pode se transformar em uma “máquina que mata”?

 

Christian Cabral – O trânsito seguro se funde em três pilares: educação, segurança viária – que é a engenharia de trânsito – e a fiscalização. 

 

No Brasil nós temos dificuldade de entender isso. A educação e a engenharia praticamente não existem. E você concentra tudo na fiscalização, que é muito deficitária. Em uma cidade como Cuiabá, você realizar uma Operação de Lei Seca por semana é muito pouco. 

 

E as nossas vias urbanas favorecem o desempenho de altíssimas velocidades. Elas têm o traçado e a ausência de fiscalização que permitem velocidades superiores a 120, 160 km/h. 

 

Nós não temos campanhas educativas na cidade para coibir essas condutas inapropriadas. Então, fica tudo concentrado na fiscalização. Como a fiscalização ainda é tímida, e poucas pessoas são atingidas por ela, nós não conseguimos mudar comportamentos. 

 

Alair Ribeiro/MidiaNews

Christian Alessandro Cabral 18-04-2018

"Aqueles que querem beber e dirigir vão sofrer as consequências da nossa intervenção"

Se nós fizermos uma retrospectiva, vamos ver que muitos de nós adquirimos o hábito de usar o cinto de segurança pelo aspecto educacional, não pela fiscalização. E vamos passando isso de geração em geração. Na época [em que foi estabelecida a obrigatoriedade] do cinto de segurança, houve um investimento maciço em educação. Hoje nós temos pouco investimento neste setor. 

 

E a engenharia. Há locais que tem que ter a fiscalização eletrônica, há locais que você tem que mudar o traçado, para fazer com que não aconteçam acidentes. Essas travessias na Miguel Sutil e Fernando Correa da Costa são extremamente problemáticas. 

 

As faixas de pedestre, em especial na Miguel Sutil, estão quase todas mal colocadas. São trechos em que os veículos vêm em altíssima velocidade e com baixa visibilidade. O condutor fica naquele dilema: se ele parar para o pedestre, o outro veículo que vem atrás pode colidir e causar um acidente de grandes proporções. 

 

Então isso tudo envolve um planejamento, uma estrutura de engenharia de trânsito eficazes. E nós temos uma deficiência grande. Isso tudo mostra o porquê desses números serem tão altos. 

 

MidiaNews – Na saída de uma festa open bar, como foi o Festival Braseiro, não seria uma oportunidade para se fazer uma fiscalização? Por que isso não aconteceu? 

 

Christian Cabral – A Lei Seca é planejada por um colegiado, por representantes de todas as instituições. Nós, gestores, conversamos no privado e estamos nos remoendo porque não nos atentamos para esse evento. Nós nos concentramos muito em shows que ocorrem na madrugada e descuidamos desse evento. Ele realmente era para ser um foco de ação nossa.

 

Esse tipo de evento, em que a bebida e às vezes até o consumo de entorpecentes são alarmantes, é o que vem norteando nossas ações. Esse evento passou desapercebido, mesmo.

 

MidiaNews – Qual a sua opinião sobre festas open bar? Elas não acabam incentivando os excessos?

 

Christian Cabral – A pessoa fazer um evento com open bar, ou não, é uma decisão comercial. O importante é a pessoa que vai ao evento ter consciência. Se ela está querendo fazer bom uso do dinheiro que empregou na aquisição do ingresso, que ela vá de carona, ou que use um transporte alternativo. 

 

Queremos deixar claro à sociedade que as forças de segurança não querem intervir no hábito que a pessoa tem de beber ou não beber. Isso é um direito individual. Nós queremos e vamos intervir sempre no direito que as pessoas têm de se locomoverem com segurança. 

 

Então, àqueles que querem beber e dirigir: esse vão sofrer as consequências da nossa intervenção.

 

MidiaNews – Como funciona a abordagem para quem não quer fazer o exame de etilômetro? Como comprovar a embriaguez? 

 

Christian Cabral – Até 2014 a legislação tinha uma deficiência. A prova de embriaguez tinha que ser feita com o etilômetro. Se o condutor se recusasse a fazer o teste, ele estava impune. Então, muitas pessoas fizeram o uso disso, e é uma concepção equivocada que as pessoas entendem que isso afeta o direito pessoal dela de fazer ou não prova contra si, quando na verdade o direito maior é o da sociedade de se locomover com segurança.

 

Em dezembro de 2014, permitiu-se qualquer meio de prova para comprovar o estado ébrio da pessoa. E por via de consequência permitiu-se a aplicação tanto das sanções administrativas – que é a multa, o recolhimento da CNH, e os sete pontos no prontuário -, quanto as consequências criminais. 

 

Hoje é importante deixar bem claro à sociedade que o etilômetro é uma prova criada para beneficiar o cidadão e não o Estado. Muita gente ainda não reconhece isso e acaba recusando a fazer o teste.

 

Para o Estado, o agente tem a autonomia e o poder legal de falar que a pessoa está sob efeito de álcool e preencher um documento atestando o sinal que a pessoa tem de embriaguez. E com base nesse documento, a pessoa já vai sofrer as sanções e ser autuada, se configurado o crime. 

 

A gente costuma esclarecer ao cidadão o seguinte: se ele realizar o teste de etilômetro, ele tem 33% de chances de não ser preso. Porque se ele fizer o teste e der de 0 a 0,33, que são as margens que são consideradas apenas infração administrativa, ele só vai ficar sujeito a elas.

 

Se ele não faz o teste de etilômetro, ele tem apenas 50% de chance de não ser preso. Porque se o agente falar que ele tem sinais de embriaguez, ele é preso. Então, ele abre mão de usar uma prova técnica e segura para provar se ele está ou não sob efeito de álcool, para deixar isso na mão do agente. 

 

E eventualmente pode até ser injustiçado, porque você pode ter olhos avermelhados – que é um dos sintomas do consumo de álcool ou droga – ou porque você fez uso destas substâncias ou apenas porque está cansado, sem dormir.

 

Você está exaltado pelo consumo da substância ou porque você passou por um stress anterior. Então, a prova técnica foi feita para favorecer o cidadão. 

 

MidiaNews – No caso da Letícia Bortolini, há duas situações: um policial atestou o uso do álcool, mas um exame apontou que não.

 

Christian Cabral – Primeiramente, a equipe de Polícia que fez a abordagem dela e do esposo foi categórica: os dois apresentavam visíveis sinais de embriaguez. Em decorrência disso, foi franqueado a ela fazer o teste de etilômetro, justamente para que pudesse ser ofertada a contraprova. Mas ela recusou.

 

É impresso um documento, em que a pessoa assina confirmando que de fato se recusou a fazer o teste, algo ofertado para benefício próprio dela. E posteriormente, o delegado que fez o flagrante ainda deu uma nova oportunidade, franqueou a ela a oportunidade de fazer o exame de alcoolemia, que é aquele feito com coleta de sangue. E ela mais uma vez recusou. 

 

Então ela teve duas oportunidades de dizer que não estava bêbada. E mais: teve chance de provar que os agentes estavam se equivocando no diagnóstico que fizeram dela. 

 

MidiaNews – Mas aí ela fez um outro exame, que apontou que ela não estava sob efeito de álcool.

 

Christian Cabral – Foi um exame clínico, realizado por um profissional da saúde. Um médico fez um exame visual e disse que ela não apresentava sinais de embriaguez. Aí também entra a questão do corporativismo. Mas é uma prova. Vai ficar a palavra do médico, que fez esse exame cerca de 5 horas após o acidente – e de 6 a 7 após a ingestão do álcool – e a palavra dos policiais, que viram a Letícia poucos minutos após o acidente.

 

Isso será levado ao juiz e ele vai decidir a palavra de quem vale mais. Mas as provas técnicas que poderiam não deixar nenhuma dúvida foram prejudicadas por decisão livre e espontânea da Letícia.

 

MidiaNews – Há a informação de que o verdureiro também estivesse sob efeito de bebida alcoólica naquele instante. Como isso será tratado no inquérito?

 

Christian Cabral – Nós não apuramos responsabilidade de pessoas, apuramos o fato. E o fato abrange tanto a conduta de quem causou quanto a conduta de quem foi vitimizado. A vítima estava efetuando a travessia em um local inapropriado – isso é fato. E também foi levantada a hipótese de ela também ter ingerido álcool, e nós também estamos investigando onde ele estava e o que fazia antes. 

Alair Ribeiro/MidiaNews

Christian Alessandro Cabral 18-04-2018

"Se ela tivesse parado na hora e prestado socorro ficaria muito próxima de receber a pena mínima"

 

O mesmo dever que o condutor do veículo tem de estar com a capacidade psicomotora em ordem, o pedestre também tem que ter para que ele não contribua para causar um acidente.

 

MidiaNews – Mas isso de alguma forma é atenuante para ela?

 

Christian Cabral – O homicídio culposo acontece ou pela culpa exclusiva ou pela concorrência de culpa. No caso, está bastante claro a concorrência de culpa. Mas durante o julgamento, o juiz vai pesar a gradação da conduta de cada um.

 

Sobre a Letícia, a velocidade, as condições da capacidade psicomotora, o comportamento após o acidente.. Isso tudo vai pesar.

 

É lógico que se ela tivesse parado na hora e prestado socorro ficaria muito próxima de receber a pena mínima. Mas pelo fato de estar em alta velocidade, sob efeito de álcool, de não ter parado para prestar socorro e muito menos reduzido a velocidade do veículo, e ter foragido, a pena dela, mesmo com a conduta da vítima, tende a aproximar-se do limite máximo, que seriam os 4 anos.

 

MidiaNews – Na decisão que culminou na prisão preventiva da Leticia, a juíza Renata Parreira citou que a médica tem “personalidade criminosa”. O senhor também tem essa visão?

 

Christian Cabral – A juíza baseou aí por causa da série de crimes que foram praticados. Principalmente a autoridade Judiciária, quando ela está julgando, ela leva em consideração o comportamento do agente antes, durante e depois do crime. Muita gente não se preocupa com isso.

 

O comportamento posterior tem tanta influência na gradação da pena quanto o comportamento no momento do crime – e até mesmo o anterior.

 

Depois do crime, o que a Letícia fez? Ela foragiu, foi para casa. Foi dissimulada, tentou negar a responsabilidade a todo o momento. Quando teve oportunidade de falar, se reservou no direito ao silêncio. Quando teve oportunidade de produzir prova em favor de sua inocência, se negou. E quando foi fazer o exame clínico, na presença do médico, ela retratou ao médico e ficou consignado no prontuário que ela não sabia o que tinha acontecido. Que “parecia” que ela tinha atropelado uma pessoa e matado. “Parece”. 

 

Até o último minuto ela tentou negar e se furtar da responsabilidade da gravíssima conduta que praticou. 

 

MidiaNews – E sobre o depoimento do marido. Como a investigação está tratando isso?

 

Christian Cabral – O depoimento do marido foi bastante evasivo. Na verdade ele está muito bem orientado. Apesar de ter ficado na companhia da esposa durante as cinco horas que antecederam o crime, ele não foi capaz de nos informar se a esposa ingeriu ou não bebida alcoólica no evento. Ele falou que não ficou na companhia dela o tempo inteiro.

 

Depois, como médico, foi perguntado a ele se, quando entrou no veículo para ir embora, percebeu algum sinal de embriaguez por parte da Letícia. E ele disse que não percebeu, entrou cansado no carro e já pegou no sono. E ele fala que dormiu durante do trajeto. 

 

MidiaNews – Com esse depoimento ele evita a acusação de omissão de socorro?

 

Christian Cabral – Ele evita tudo. Ele não sabe se ela bebeu ou não bebeu, então evita um falso testemunho. Ele evita eventual responsabilização pela omissão de socorro, porque quem está dormindo não pratica crime. E não esclareceu nada.

 

MidiaNews – Diferente da decisão da juíza, o desembargador Orlando Perri entendeu que ela não tinha conduta criminosa e concedeu habeas corpus. A decisão foi correta na sua visão?

 

Christian Cabral – Tecnicamente a decisão foi correta, porque a pena à qual a Letícia se submete não comporta prisão cautelar. A juíza, quando decretou a preventiva, entendeu que houve um dolo eventual. Mas naquela fase não havia elementos para se comprovar esse dolo. Não existem ainda nos autos esse dolo eventual. 

 

Nós temos, até o momento, um homicídio culposo no trânsito, apenado com a pena máxima de quatro anos. Então, do ponto de vista técnico, a decisão do Tribunal está acertada. 

 

MidiaNews – Beber e assumir a direção não configura dolo eventual?

 

Christian Cabral – Não, não! O dolo eventual é quando o comportamento anterior da pessoa inequivocamente mostra que ela assumiu o risco de causar aquele resultado, pouco se importando. É dever nosso comprovar isso. Porque senão vai ficar na negligência, imprudência… O beber já é uma conduta imprudente, o excesso de velocidade é outra. Então, por enquanto, temos condutas imprudentes, mas nada que demonstra que ela assumiu o risco.

 

MidiaNews – Vocês estão coletando imagens também da festa?

 

Christian Cabral – A festa não teve monitoramento. Mas teve cobertura social. Nós estamos fazendo um monitoramento nas redes sociais para tentar alguma imagem que comprove, apesar de que a palavra dos policiais já é meio de prova. Mas se tivermos alguma coisa, vai reforçar.

 

Nós abrimos duas linhas de investigação paralelas, apesar de ser sobre fatos circunstanciais, não preponderantes na investigação. Mas, para que não haja nenhuma nebulosidade, estamos apurando se efetivamente era a Letícia que estava dirigindo e agora vamos apurar se o esposo estava dormindo ou não na hora do acidente, porque isso tem repercussão na esfera criminal. 

 

MidiaNews – Voltando às ações da Lei Seca. Há um perfil de quem é preso nestas operações?

 

Christian Cabral – Não. Nossas operações têm um modelo diferenciado. Normalmente, em outras operações, um agente fica à frente escolhendo quem vai parar e todo corpo abordando os veículos que foram escolhidos por aquele agente. Nas operações da Lei seca cada agente, de cada força de segurança que participa, tem autonomia para escolher o veículo e o momento que vai abordar. Por isso que já paramos delegados, juízes, desembargadores, promotores, pedreiros, faxineiros, empresários.. Para-se de tudo, prende-se todo tipo de gente. 

 

MidiaNews – Já é possivel fazer um balanço desses quatro anos de operação? Os números vêm caindo ou não?

 

Christian Cabral – Nós acreditávamos que o número estivesse caindo. Nas primeiras operações, eram de 10 a 20 flagrantes por edição. Esse ano nós fizemos uma mudança.

 

Antes, as operações aconteciam nas vias principais da cidade – Isaac Povoas, Fernando Corrêa, Rubens de Mendonça. Nós começamos a perceber, principalmente pelo monitoramentos de aplicativos, que as pessoas se informavam entre si e muitos motoristas pegavam vias secundárias, onde não estávamos.

 

Nós fizemos algumas mudanças e, para nossa surpresa, nas três últimas operações tivemos diversas prisões.

 

Uma foi na Estrada do Moinho, após a [casa noturna] Sertarena e a Lua Morena. Com 40 minutos tivemos que encerrar a operação porque havia 15 presos, lotado a van, com fuga de preso e tudo. A última foi feita próxima ao Subway, na Historiador Rubens de Mendonça. Não tínhamos o costume de fazer ali, porque não tem casa noturna, nada ali. Em uma hora foram 17 pessoas presas. São números altíssimos. 

 

MidiaNews – Existe uma estimativa de arrecadação de cada operação?

 

Christian Cabral – Em cada operação arrecada-se no mínimo R$ 50 mil. Aí tem mais mais guincho, pátio, impostos e multas que a pessoa precisa pagar para liberar o veículo. As operações são autossustentáveis.

 

MidiaNews – Há um perfil das pessoas que mais morrem em acidentes de trânsito?

 

Christian Cabral – Os mortos em sua maior parte são jovens de até 28 anos e maioria de sexo masculino. E essa maioria é de condutores de veículos de duas rodas. Nós temos um crescimento muito grande da frota de duas rodas. Muitos desses condutores optam por adquirir esse veículos devido às deficiência do sistema público de transporte, para minimizar os efeitos negativos da locomoção do transporte público.

 

Eles compram o veículo, mas não passam pelo processo regular de habilitação. Eles não adquiriram conhecimento prático e técnico e acabam sendo os causadores e vitimas dos acidentes no trânsito. 

 

MidiaNews – Há ainda outros fatores que podem levar o acidente no trânsito?

 

Christian Cabral – A frota de Mato Grosso, especialmente em Cuiabá, cresce 8% ao ano, e as vias não crescem na mesma proporção. Pelo contrário, nós temos vias aqui que reduziram. A Historiador Rubens de Mendonça teve afunilamento com o corredor exclusivo de ônibus, a FEB em Várzea Grande também afunilou com a obra do Veículo Leve sobre Trilhos. Então, com mais veículos e menos espaço, há um risco bem maior de acidentes.

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