Ruptura da ordem internacional e o futuro das nações

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CAMARA VG

A invasão da Ucrânia significa muito mais do que a tomada de território reivindicado pela Rússia em nome da proteção das suas fronteiras, postas em riscos desde que a Otan resolveu descumprir os acordos feitos ao final da Guerra Fria de não se estender para os países do leste europeu.

Não é preciso ser um conhecedor de geopolítica e relações internacionais para saber, ou pelo menos vislumbrar, que os russos um dia cobrariam promessas quebradas e um conflito bélico teria lugar. Exatamente como se vê agora.

O descumprimento de acordos internacionais, insatisfações e mal-estar na ordem internacional estão em jogo no conflito entre Rússia e Ucrânia.

Não faltaram avisos do presidente Vladimir Putin.

Para o presidente russo era chegada a hora de romper a ordem internacional inaugurada no final da Segunda Guerra Mundial e renovada à moda ocidental na superação da Guerra Fria. Se impunha majestosa, então, para ele, a necessidade de escrutinar a chamada “Pax Americana”.

É certo que uma ordem internacional traz consigo um sistema de equilíbrio de poder posto ou imposto que, contudo, não objetiva evitar os conflitos e as guerras. Isso seria impossível. O propósito de um sistema de equilíbrio de poder é reduzir as possibilidades de um país dominar outros, assim como mitigar a extensão dos efeitos dos conflitos quando surgem.

O sistema de equilíbrio de poder, portanto, traz consigo uma paz aparente e se justifica na estabilidade e moderação. Não satisfaz completamente todos os membros do conjunto de países. O equilíbrio funciona enquanto consegue manter as insatisfações abaixo daquele nível em que a parte prejudicada tentará derrubar a ordem internacional por meio do uso da força.

Daí se conclui que a invasão da Ucrânia é mais do que um conflito bélico. É a declaração por parte de Vladimir Putin de que as insatisfações russas estão acima do nível tolerável e que o equilíbrio de poder está rompido.

A mensagem que vem da Rússia é a de que não conseguiu se manter naquele nível de satisfação de antes.

Não se trata de uma guerra pela guerra.

Não se rompe a ordem internacional posta sem revisar o equilíbrio de poder e fundar uma nova ordem, e esta não se impõe sem que todos os membros do conjunto de nações queiram.

Ainda é cedo para saber que ordem mundial nova está por vir. Quanto tempo vai durar o conflito entre Rússia e Ucrânia. Se o Ocidente vai revidar. Se, nesta hipótese, a resposta da Rússia estará nas armas nucleares.

Enquanto não se tem as respostas a essas indagações de ordem militar, as cadeias globais de suprimento estão sendo afetadas pelas sanções econômico-financeiras impostas pelo Ocidente à Rússia. E já se sabe que a guerra aponta a história para uma nova direção.

A alta das cotações do petróleo, gás, carvão, trigo, milho e metais, bens que a Rússia produz em abundância, faz disparar também os preços de grande parte das matérias primas de que o mundo depende. Com o aumento do preço do petróleo e dos alimentos a inflação não vai arrefecer em nenhuma parte do mundo.

Enquanto a Rússia faz sua guerra militar contra a Ucrânia, o resto do mundo enfrenta aquela econômica sem precedentes na história recente.

Embora o Brasil esteja fora da lista dos países considerados hostis à Rússia, o aumento do preço do barril do petróleo, assim como do nitrogênio, do fósforo e do potássio, insumos para a preparação dos fertilizantes, torna o país vulnerável.

O comércio exterior brasileiro antes da guerra estava acima de US$ 0,5 trilhão. As exportações superaram US$ 100 bilhões. O agronegócio representava 43%. Em 2020 o agricultor brasileiro já alimentava cerca de 200 pessoas. Se em 1990 o Brasil colhia 1,5 toneladas de grãos por hectare, em 2020, aumentou para 4 toneladas.

São dados impressionantes. Contudo, a situação atual imposta pela guerra alerta para que o Brasil procure alternativas frente às transformações globais. Torna-se imperiosa a busca da independência soberana não apenas no setor da agricultura, e de fertilizantes, como também em outras instâncias estratégicas para o Brasil como fabricação de vacinas, medicamentos, alimentação, tecnologia, pesquisa e desenvolvimento.

Quando a guerra acabar o mundo não será mais o mesmo.

De unipolar passará a multipolar, com players importantes como China, Índia, Rússia e Japão. Sem menosprezar o Oriente Médio.

A “realpolitik” será mais imoral e coercitiva.

O “soft power” estará tão escasso que emergirá renovado o “hard power”.

Não apenas a multivariedade de retaliações dos países e das organizações internacionais têm lugar contra a Rússia, como também aquelas das empresas privadas despontam na guerra contra a Ucrânia como instrumentos importantes nas sanções econômico-financeiras e comerciais impostas contra o país moscovita. E tudo isso em nome do tão propalado ESG.

Em poucos dias de guerra, a Ucrânia se vê devastada com a morte de civis, o êxodo dos que lutam pela vida, a destruição de prédios públicos, hospitais, escolas, indústrias e comércio. Por outro lado, a Rússia se vê às voltas com os ataques militares contra o país vizinho, e com duas outras batalhas internas. Uma contra a insurgência da população russa que não quer a guerra e dos opositores, outra contra os efeitos das sanções econômicas que, caso não calibradas, poderão arrastar o país ao declínio econômico-financeiro, comercial e industrial. E com ele o resto do mundo.

Sanções econômicas têm impacto internacional ilusório e resultados que podem ser nefastos à população. A experiência revela que as sanções impostas contra Cuba, Venezuela, Coreia do Norte e Síria, para citar apenas casos recentes, não surtiram efeitos no que diz respeito à deposição do chefe de estado, ou de governo, e causaram sofrimento e esgotamento relevantes a populações inocentes.

No caso da Rússia, a população já não consegue fazer operações bancárias básicas, como receber e enviar dinheiro, a moeda local se desvalorizou brutalmente, o banco central russo viu seus ativos serem congelados, o comércio e a indústria locais pararam.

As empresas multinacionais, desde aquelas dedicadas ao comércio do luxo, até as mais fundamentais como de tecnologia, telecomunicações, petróleo, navais, dentre outras, já deixaram o país.

Sanções devem ser aplicadas como operações cirúrgicas, isto é, dirigidas ao presidente Putin, seus auxiliares diretos, políticos próximos, militares, oligarcas amigos e familiares. Esses, sim, devem sofrer penalidades. Caso contrário, quando a guerra acabar, dois países, Rússia e Ucrânia, precisarão ser reconstruídos. E o resto do mundo se verá imerso em uma crise econômica sem precedentes, haja vista os graus de globalização e interconexão impostos aos países hoje.

Outra coisa é certa, depois de enterrar os mortos e cuidar dos vivos, o mundo não será mais o mesmo, porque todos os países terão usado suas reservas e feito face a um invasor tão destemido como Vladimir Putin, qual seja, a falta de sensatez, “intelligentsia” e de preparo geopolítico de nossos líderes mundiais que jogaram a todos na incerteza sobre o amanhã.

 

Maristela Basso é professora de Direito Internacional e Comparado da USP e sócia coordenadora do Núcleo de Direito Internacional do Nelson Wilians Advogados.

Fonte: Gazeta Digital

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